Especulações livres

11 de out. de 2005

O começo (micro conto)


E no começo havia isso, somente dúvidas, muitas, de todos os tipos e sabores. Saboreando as dúvidas, eu tentava decifrá-las, mas curti-las também, como petiscos, como pequenos doces, como aquele bolo de morango com creme que eu adoro pedir quando vou à padaria. Uma média, café com leite, clarinha, por favor. E um pão na chapa.

Eu acordei chorando. Soluçando. A destruição havia sido gigantesca, incompreensível. Era isso que mais me amedrontava: a inexorabilidade daquilo tudo. Eu andava pela rua, aquela mesma que havia sido cenário de tantas das minhas fantasias de cidade grande. A mesma pela qual andava sempre, de dia ou de noite; e quando ali andava, ali me sentia em algum lugar. Sentia-me parte de algo maior, interessante, que fazia sentido. Havia sido alguém, chegado a algum lugar, alcançado algum objetivo.

De repente, nada! Os buracos eram enormes, pois o terremoto havia sido devastador. Não foi um terremoto qualquer, que balançou somente a cidade; ele havia destruído grande parte do planeta Terra. Não me perguntem como eu sei, eu simplesmente sei: algo daquela magnitude não poderia ter acontecido somente aqui, deixando todo o resto intacto. Algo daquela magnitude precisaria deslocar tudo o que havia à sua volta, para conseguir causar tamanho estrago. Para destruir São Paulo, havia que se destruir também boa parte do Brasil; da mesma forma como essa destruição deveria causar um caos que se estenderia à toda América do Sul, e depois do Norte, e assim por diante.

Não, as televisões não noticiaram nada. E se o fizeram, eu não assisti, pois eu estava na rua no momento em que tudo aconteceu. Sim, estava lá, correndo todos os riscos possíveis. Explosões dos encanamentos de gás subterrâneos, que alimentam a cidade, poderiam ter me queimado todo, me desfigurando. Concreto poderia ter despencado de algum prédio, me esmagando, como a um inseto. Ora, um prédio inteiro poderia ter caído em cima de mim! Mas não, eu sobrevivi, ou algo desse tipo. Estava com Antoine, um amigo meu.

Amigo seria uma maneira polida de referir-me a ele. Quem tem amigos nessa cidade? Sei lá, talvez eu seja muito restrito na minha definição de amizade. Ele me ligava, queria sair comigo, eu nunca entendi o porquê. Acho que ele me usava como complemento às terapias que fazia. Eu nunca entendia o seguinte: se ele fazia terapia, por que continuava com todos aqueles dramas? E por que jogá-los em cima de mim? O que eu tinha a ver com aquilo tudo? E por que tudo o que eu dizia, quando era minha sincera opinião, o irritava profundamente? Por que as pessoas não conseguem simplesmente me deixar falar?

Pois por alguma fatalidade do destino, era com Antoine que eu estava quando o caos aconteceu, quando tudo tremeu, quando tudo caiu por terra. Acho que íamos até a padaria, deve ser isso. Íamos ter outro daqueles papos intermináveis sobre psicologia, antropologia, sociologia, astrologia, psicografia, arte cinética, arte conceitual, o inconsciente, a noite, o vazio, as drogas, o sexo, a falta do sexo, o amor, a impossibilidade do amor, a “des-necessidade” do amor. Era isso uma amizade? Eu só queria estar ali, conversando, aquilo já me bastava para alguma coisa. Ainda que eu não pudesse falar o que pensava, pois minhas palavras detonariam a ira do rapaz. Diria que eu estava sendo cruel, ou grosso, ou míope. Diria que eu não entendia do que ele estava dizendo. Diria que eu precisava me tratar.

Talvez precisasse mesmo, por agüentar a pessoa daquela forma, sem falar nada. Por que não estourar, não sair dali? Por que correr, arrumar-se, esperá-lo na frente do prédio, sorrir, abraçar, dizer que tinha saudades, buscar as palavras certas para cada momento, cuidar para que o ritual não se desfizesse em nenhum momento? Por que manter aquilo? Seria a falta absoluta de algo para fazer? De algum amigo? De alguma forma de amor? De auto-estima?

Acordei com lágrimas nos olhos. Estava tudo destruído. Havia sempre aquele momento, entre o dormir e o acordar, que não era nem um nem outro. Nesses momentos, me parece, é que tomamos consciência do que o sonho foi, do que se passou, e determina-se ali o que levaremos para o nosso dia. Comumente eu levo tudo, cada detalhe, cada porta aberta, cada chave guardada no bolso, cada expressão no rosto, cada sentimento. Principalmente isso: cada sensação, de cada momento. Incredulidade. Terror. Ausência de sentido. Dor. Simples desespero e dor e vontade de chorar por uma tragédia imensa, incomensurável.

6 comentários:

Anônimo disse...

Legal, escreva mais.

Anônimo disse...

Sabe, por um período eu escrevi contos.... mas depois eu perdi o ânimo, acho que não sou um bom ficcionista, até peças de teatro eu comecei, mas pararam no meio. Gostei do seu conto, e faço minhas as palavras do Walner: escreva mais. Ando meio sem tempo pra escrever no meu blogue, mas prometo atualizar, abraço!

Anônimo disse...

Já escrevi peças de teatro. Nada publicado. Coisa de fim de semana. Mas sei que não é tão complicado assim publicar.

Anônimo disse...

qual é teu email para eu te enviar o escrito?

Anônimo disse...

Parabéns,Marko!!

'Rapaz', vc.escreve muito bem, tem q. levar adiante, os leitores irão agradecer, mas assim como certa feita, vc. notou o real e a tristeza numa poesia q. escrevi, da mesma forma, eu percebi as 02 coisas no seu conto, estou certo??

André disse...

q pena marko, ia ser legal te encontrar lá. o aguilar deve aparecer. mas tem dia 12/11 já marcado, no bar chamelon lá em higienópolis, um sábado. se der, aparece por lá. abs.

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