Especulações livres

10 de jan. de 2006

"Jarhead" e a sedução do fascismo



Provavelmente a cena que mais mexeu comigo ao assistir esse filme (Soldado Anônimo, EUA, 2005, 123 min. dirigido por Sam Mendes) foi aquela que mostra os fuzileiros navais, ainda em treinamento, assistindo ao filme Apocalipse Now. A excitação dos marines, a forma como cantam o tema de uma das cenas mais poderosas do filme, o gozo alcançado quando as bombas caem sobre as vilas vietnamitas, o sorriso do protagonista que não consegue desgrudar seus olhos da cena, mesmo quando constantemente cutucado pelos colegas empolgados.

Tudo isso me lembrou o fato que vivi, na época da guerra (1991), dentro de uma escola americana: enquanto o noticiário (a recém criada CNN) mostrava, num corredor repleto de alunos que curtiam o intervalo, cenas de bombardeio no Iraque, os mesmos batiam palmas e gritavam da mesma forma como se vê no filme, aplaudindo a atuação de seu país na "libertação" do Kuait (ou a destruição dos iraquianos?).

A cena de Apocalipse Now é brilhante, e provavelmente a que mais me impactou nesse que é (penso eu) um dos maiores filmes já feitos. Ao som de Cavalgada das Valquírias, do compositor ultra-nacionalista alemão Richard Wagner (1813-1883), aviões norte-americanos despejam bombas sobre uma vila vietnamita. As imagens dos aviões lembram filmes da II Guerra Mundial. Wagner evoca o nacionalismo alemão, o nazismo, e as associações possíveis de sentido trazidas por essa cena são imensas. Deixo ao leitor/espectador que faça as suas. Longe de críticas vazias e fáceis, são construções de sentido assim que empolgam e permanecem mais, me parece.

Wagner era um dos compositores mais louvados por Hitler, sendo adotado como um dos elementos da propaganda oficial da cultura superior germânica. Nietzsche, em seus escritos sobre arte, inicialmente indicava Wagner como expressão de valores condizentes com as críticas desse filósofo ao decadentismo da modernidade democrática que se iniciava no século XIX. Ambos foram influenciados pelo filósofo Schoppenhauer, caso a ser analisado por quem entende mais do assunto. Mitos como o das Valquírias, evocando o passado nórdico da Alemanha e os seus valores superiores foram manipulados das mais variadas formas para fortalecer o ideal de uma superioridade ariana, com as conseqüências já conhecidas. Volto aqui a pensar sobre as intersecções entre arte e política, e sobre a força dos valores manipulados pela ação política para mover as pessoas para este ou aquele fim.

Quando vi a cena no filme, pensei na enorme sobreposição de referências que poderiam estar presentes ali. O filme evoca uma crítica à guerra do Vietnã, que evoca o embate contra o nazismo, além de evocar a experiência nazista de uma forma complexa, articulada inclusive com as experiências políticas recentes. Ao pensar a Guerra do Golfo de 1990, o filme evoca o momento atual. O Iraque vira como que um símbolo das tentações do fascismo, e a guerra vira mote para falar dos valores americanos, ideais e reais. Os ideais democráticos, presentes no sonho fundador do país em 1776, esbarram sempre no fascínio da guerra de conquista e na crítica perene à democracia, que periodicamente ganha apoio na nossa "civilização". A posição do filme, me parece, é a de que a América (aqui colocada como conjunto abstrato de valores) está a todo tempo sendo deslocada, na prática, pela necessidade da mobilização permanente para a guerra, e que isso está no âmago da própria sociedade. A cada vida construída/destruída por esse processo, se propagam experiências e valores que se repetem. A guerra passou de pai para filho, como uma herança "genética", inscrita no DNA do país.

E já que tocamos no protagonista, interrompo a desconstrução dessa cena para falar um pouco deste personagem maravilhoso, um verdadeiro obsecado, diferente de qualquer estereótipo do americano ignorante e republicano que possa circular pela mídia. O menino que vira fuzileiro naval e atirador de elite não o faz pelo amor à pátria, por admiração a Bush, ou por ódio racista ou xenófobo: ele cresce assistindo a guerra, evocando a guerra, brincando a guerra, vivendo a guerra. Filho de um veterano da guerra do Vietnã, ele é fruto de uma sociedade em guerra permanente. A sua entrada no exército é algo tão natural quanto um casamento ou uma faculdade seriam para uma família de classe média estereotípica. Talvez uma mensagem aqui seja: a sociedade (norte-americana?) criou um vasto estoque de pessoas dispostas e enstusiasmadas para engajarem na guerra, não interessa o motivo. As racionalizações políticas importam menos do que a mobilização da força e do intelecto para a missão de matar e destruir, de garantir a hierarquia, de obedecer às ordens e alcançar algum tipo de glória com isso. A mobilização, dessa forma, de um certo "tesão pela morte" (talvez o tanatos freudiano), se me permitem criar aqui conceitos, é bastante explorada. No protagonista, pelo seu desejo em ver a "nuvem rosa" que seguiria ao tiro certeiro na cabeça do seu alvo. Temos aí diversos elementos sendo manipulados: tesão físico, mobilização, morte, pulsões de vida que se aproximam da morte (do outro). A política, no entanto, sempre se faz presente. Um detalhe interessante, que pode passar sem ser notado, é fato de ser um soldado texano (terra de Bush filho, atual personagem de um novo fascismo americano) que faz as críticas mais contundentes aos fatos não-democráticos que ocorrem durante o filme. Como, por exemplo, quando os soldados são obrigados a tomar um remédio sem eficácia comprovada, assinando um documento que exime o exército de quaisquer responsabilidades sobre o fato. Sua acusação, de que aquilo era un-american, contrariando os valores americanos, soou aos meus ouvidos como que uma tentativa de recuperar esse personagem, o americano médio, o americano com sotaque sulista, tão usado para ridicularizar os valores medianos daquela sociedade. Seria este americano médio o responsável pela guinada autoritária do país?



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