Especulações livres

17 de jan. de 2011

O Nevoeiro (Frank Darabont, EUA, 2007,)


Uma versão do texto seguinte foi publicado na revista Mente e Cérebro de janeiro de 2009. Achei esse posto esquecido desde então. A intenção original era a de publicar o texto depois que saísse na revista, mas acabei deixando de lado. Não queria perder a oportunidade de publicar também aqui no blog. Espero que curtam!

------------

Construindo o inimigo: “O Nevoeiro” como metáfora para as guerras culturais norte-americanas

O filme O Nevoeiro baseia-se numa história de mesmo nome do autor Stephen King publicada em 1980. King, um dos mais prolíficos e conhecidos autores de horror do mundo, é fonte constante de adaptações cinematográficas; algumas delas já clássicas (como O Iluminado, dirigido por Stanley Kubrick). A história de O Nevoeiro centra-se no medo que emerge das relações humanas. O que acontece quando somos empurrados a situações limítrofes? Como lidamos com nossos conflitos e medos quando nos sentimos “encurralados”? A barbárie, como nos mostra essa história, está latente em todos nós, ainda que coloquemos a culpa nos monstros e outras entidades sobrenaturais que habitam essas histórias.

A história se passa numa pequena cidade do nordeste dos EUA, onde um grupo de pessoas se vê presa num supermercado quando um misterioso nevoeiro cobre a região. Inicialmente assustadas mas tentando raciocinar sobre o que fazer, o grupo é tomado de pânico quando se descobrem estranhas e mortais criaturas habitando o nevoeiro, prontas a matar qualquer pessoa que se aventure para o lado de fora. A partir desse ponto, vemos a exacerbação dos medos e paranóias das pessoas acuadas, abrangendo desde o fanatismo religioso (pronto a explicar os monstros como castigo divino), passando pela busca de apoio no coletivo, até a total falta de perspectivas de salvação. Diante da possibilidade real da morte, face à brutalidade de uma situação totalmente irracional e destrutiva, o ser humano não falha em dar sentidos os mais diversos ao seu contexto, de onde derivam os mais violentos conflitos.

Além desse foco nos meandros da psiquê humana, o filme sugere sutis críticas ao contexto cultural dos EUA recente. A divisão do grupo preso no supermercado, entre religiosos fundamentalistas e aqueles que acreditam numa explicação mais material para os monstros (seriam eles um experimento do governo que deu errado?), sugere a divisão que corrói há anos a própria sociedade norte-americana contemporânea. Uma sociedade cada vez mais dividida em “conservadores” e “liberais”; entre aqueles que buscam restaurar valores cristãos e outros preocupados em restaurar os valores democráticos tidos como fundamentais à sociedade estadunidense; entre apoiadores da ciência e aqueles que querem ensinar o criacionismo (ou o design inteligente) nas escolas; entre aqueles que pensam o mundo atual como envolto numa guerra civilizatória entre o Islam e o cristianismo e aqueles que desejam o fim das guerras e do intervencionismo unilateral dos EUA.

A noção de um inimigo difuso, desconhecido e mortal sugerem assim um comentário sagaz sobre as políticas da administração republicana dos últimos 8 anos nos EUA. No filme, esse grupo é representado pela personagem da Sra. Carmody, uma religiosa fundamentalista que consegue, a partir do medo gerado pelo nevoeiro, liderar um grupo dentro do supermercado, até o ponto de atacar quem não partilhava suas idéias. Como se argumenta, afinal, com explicações metafísicas e sobrenaturais? O diretor sugere que, cegados pelo medo, somos capazes de abandonar ideiais compartilhados de civilização na busca desesperada de salvação. O medo do outro torna-se, assim, uma arma de fácil manipulação em tempos de desconfiança generalizada. A fragilidade da ordem e da civilização torna-se, assim, o monstro mais amedrontador do filme.

Nenhum comentário:

Total de visualizações de página