Especulações livres

29 de dez. de 2006

Sinner's Blood at the Alamo



Ontem a noite, gracas a um fortuito telefonema, pude sentir novamente as emocoes de assistir a um filme inusitado, numa das instituicoes mais interessantes dessa cidade: os cinemas Alamo. O conceito e simples e brilhante: cinemas em varios bairros da cidade, com mesas em todas as fileiras. Antes dos filmes, os espectadores podem pedir comidas e bebidas (geralmente hamburgueres, cerveja e "chicken strips"), enquanto assistem a clipes absurdos, ligados ou nao ao filme em cartaz. Vinhetas dos anos 50 e 60, filmes caseiros, filmes classicos redublados de forma engracada, etc. Toda quinta-feira, descobri ontem, passam filmes de terror de graca, a meia-noite. Chego no cinema e me deparo com tipos saidos das saudosas sessoes comodoro. Antes do filme, uma breve apresentacao, sorteio de vale-DVDs na locadora cult local, e o filme comeca. Sinner's Blood (81 min., USA, 1969) nao e brilhante em nenhum aspecto. A historia e mal ajambrada, e comeca com duas meninas que perderam a mae, sendo forcadas a abandonar sua Chicago natal para morar com parentes numa cidade generica do interior. La encontram garotos ligados a gangue de motoqueiros locais, entre outras situacoes bizarras. Para mim, foi a chance de finalmente ver um exemplar dos drug movies dos anos 60; as cenas em que um dos motoqueiros toma LSD sao impagaveis. Varios tipos de subversao da moral fazem pequenas aparicoes, inclusive sexo entre parentes, sexo livre em geral, homossexualismo, maconha, LSD, sangue e tortura. Ainda assim, o filme parece pudico perto de producoes mainstream de Hollywood hoje em dia, um sinal dos tempos. Para mim, alem da experiencia de estar vendo filmes trash (esse sim e trash, distante dos noitoes paulistanos geralmente povoados por filmes de arte e altamente sofisticados, como Cannibal Holocaust) a meia noite, algo que me traz boas lembrancas, tive a chance de ver algo unico na minha experiencia cinefila: o revide do homossexual vitima da homofobia da camera. Duvido que esse filme seja o unico exemplo disso, mas que fique documentado que foi a minha primeira vez. Fui levado, por conta disso, a torcer contra a mocinha e me sentir emocionado com uma cena de sadismo explicito, algo um tanto questionavel, mas que nao deixou sequelas maiores: afinal, a causa era mais do que justa. Explico: dois dos motoqueiros da gangue, numa cena de orgia (fantastica alias, suja, improvisada), saem juntos e sao posteriormente pegos em "caricias homoeroticas", ou cometendo pederastia, ou sei la como se dizia isso em 1969. A "mocinha" do filme, que havia tido um encontro sexual com um dos caras, ficou abalada em ver a cena, irritou-se, e planejou vingar-se, numa atitude demasiadamente humana que levaria, posteriormente, a morte do rapaz. O amante dele (pelo menos na tal cena), indignado, protagoniza cenas de tortura e misoginia que seria horriveis em qualquer outro contexto, mas ali me pareceram um tanto revolucionarias. Sei que cometo inumeros pecados aqui, mas e uma leitura bastante pessoal e interessada do filme. Pois o filme, ainda que se atenha ao canone ridiculo de punir com a morte qualquer personagem que se atreva a fazer sexo com outro homem, consegue dar voz ao amante indignado, punido a mulher que causou a morte do seu parceiro. Se pensarmos que tal revide e imensamente raro, senti-me vingado por um filme de 1969, apos ter que assistir calado inumeros personagens queers, gays, etc etc serem trucidados sem nenhuma explicacao nas telas do cinema. Nao que a tortura da moca seja um alivio: o alivio e perceber que houve na tela um resquicio de voz contraria, de indignacao, de resposta a algo que parece tao inevitavel a ponto de estar naturalizado na maior parte dos filmes.

21 de dez. de 2006

Passado e futuro


Eu tinha uma mania muito esquisita antigamente (uso esse termo por que o ano passado, hoje em dia, me parece que aconteceu ha 10 anos atras): quando batia uma carencia, eu ligava para todos os meus ex amores, ficantes, etc. Olhando para tras, penso que deveria ser algum tipo de ritual de expiacao: eu confrontava todos os meus erros e acertos talvez, ou ficava me culpando por todas as pessoas que acabei deixando para tras (isso na epoca que eu dava os pes-na-bunda), ou ficava tentando entender "o que eu tenho de errado?", quando o pe era dele e a bunda era minha. Estranhamente, depois de tirar umas boas ferias do mercado de paqueras (entre outros, mas isso nao e papo para o blog), ja nao consigo ver utilidade em ficar olhando para tras. Ficou muito para tras tudo o que aconteceu, por melhor que tenha sido uma ou outra experiencia. Mas por que, o ceus, esse papo agora, Sr. K.? Ora, leitor entediado, por que existe uma infima vontade em mim de testar as aguas novamente, por mais frias e profundas que parecam. Se nunca tive medo de nadar, por que me apavoro tao facil ultimamente? Por que me parece mais facil ficar preso dentro de mim mesmo do que abrir a guarda, um pouco que seja? E essa vontade me deu vontade de rever o que me levou ao ponto em que cheguei, ainda que seja somente para constatar que esse ponto ja esta no passado. Novamente, nao sei direito onde estou. Sim, ja soube, mas esses tempos tambem se foram. Ou, quem sabe, estou apenas seguindo a tradicao de escrever textos de final de ano, com analises do que passou no ano que esta por terminar. Olhando para tras, vejo um deserto, muita terra seca, ainda que cortado por uma estrada novinha em folha, recem asfaltada. E continuo andando nessa metaforica estrada, com alguma esperanca de um dia, quem sabe, deixar o deserto para tras e encostar o carro um pouco, ou ate, quem sabe, deixar alguem andar comigo de carona.

9 de dez. de 2006

Apocalypto (EUA, 2006)






Ontem fui ver o filme, ja devidamente informado das injusticas que Mel Gibson e o filme cometiam contra a cultura Maya, contra o povo maya, sobre a violencia extremada e gratuita que perpassa todo o filme, sobre os horrores que se acometeriam sobre mim se eu porventura gostasse mesmo que um pouco do filme, sendo o diretor um cristao fanatico e publicamente anti-semita. No final do filme, ainda abalado com as cenas de extrema violencia (que sao realmente impressionantes), e maravilhado com as imagens de uma cidade Maya decadente e estranhamente familiar (onde politicos e clerigos, ao lado de uma elite sangue-suga, se deleitam nos prazeres da carne e da arte, dando vazao a um sadismo puro de forma extremamente grotesca e livre), posso dizer que gostei sim do filme. Mas como eu achei o ultima versao de King Kong o filme B mais caro da historia, e sempre achei Mojica Marins um cineasta serio, o leitor desconfiado pode achar que eu tenho pouca ou nenhuma autoridade para recomendar um filme como esse. Por isso mesmo aconselho cautela: nao va assitir o filme esperando um drama historico, nem uma historia de amor pura, nem um filme politico, nem qualquer critica velada ao presidente Bush ou ao imperialismo americano.


Tais leituras pseudo intelectuais e CHATAS nao fazem justica ao que eu realmente achei interessante no filme: violencia cuidadosamente pensada e destrinchada em suas inumeras nuances; motivacoes complexas e, por vezes, irracionais; uma estetica quase kitsch, ou para usar o termo que um critico usa para descrever o filme, pornografica, na forma como se deleita por detalhes morbidos dessa dita violencia. O comeco do filme e bem irritante, mostrando os "bons selvagens" integrados com a floresta. Mas logo a coisa toma um rumo macabro, e o filme deslancha. Em alguns momentos me lembrei de Cannibal Holocaust, e outros filmes do genero. Nao pela razao simples da violencia, mas pela forma como a violencia e analisada e tornada concreta. O uso da estetica Maya torna o filme ainda mais exotico e interessante, e espero que este seja o primeiro de muitas reconstrucoes desse contexto cultural.

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