Especulações livres

4 de dez. de 2005

Audio-visual brasileiro

Pedindo desculpas ao pessoal por ter saído sem ter nem falado um tchau, falo agora um pouco dos curtas que acabo de ver no CCBB aqui em São Paulo. Peço desculpas por alguma opinião que possa desagradar aos diretores, mas lembrem-se, é só a minha leitura pessoal!


· Sozinho, André Pagnossin (13', videoficção)

Esse curta conseguiu a proeza de me deixar excitado por um pé, feminino e banhado de sangue. Me pareceu que o sexo era a parte fundamental do filme (ou estaria eu somente interessado nessa parte?), e a cena da menina lambendo o dedão me pareceu o ápice, o orgasmo fundamental da coisa toda. Excelente atuação da atriz.

· Don´t Smoke, André Kapel (3'30'', videoficção)

Final supreendente, com certeza. Efeitos especiais maravilhosos, eu fiquei arrepiado o tempo todo, passei bastante nervoso. Gostei do nihilismo (palavra perigosa, eu sei) da situação, me atrai essa forma de pintar um quadro, uma situação, explorando poucos elementos na sua intensidade e nos seus possíveis sentidos (como fiz no conto abaixo). Se fosse um outro final, daria pra explorar milhões de outras coisas, mas daí seria outro filme..

· 06 tiros, 60ml, André Kapel (17', videoficção)

Já fiz um comentário sobre esse filme num post passado. O filme fez parte do Festival Internacional de Curtas, e foi exibido na sessão Dark Side. Dessa vez consegui captar melhor a história, acho eu. Outro final surpreendente. Continuo fã da cena do elevador, e dos efeitos visuais-sonoros.

· Hotel, André Kapel (14', videoficção)

Uma história bastante bizarra. Gostei da narrativa fragmentada, que aparece também no 06 tiros... Mas nesse filme em particular, parece que Kapel não se preocupa em fechar os fios soltos que deixa pelo caminho, e esses fios soltos compõe como que um quadro também. Estaria ele querendo criar um clima, mais do que contar uma história? Evocar um sentimento? Quase um tipo de cinema-poesia? Alguns elementos em comum nos filmes: a questão dos remédios, dos zumbis, da violência-luta-sangue. Me pergunto se foi uma cameo appearance o personagem lendo o cardápio no botequim ao final do filme. Achei meio estranha a máscara. Não o fato de alguém usar uma, mas a estética da máscara mesmo; não consegui deixar de pensar num Holloween ou coisa parecida.

· Jogos, Eduardo Aguilar (7'06'', videoficção)

Comentei esse filme no blog do Edu (Sonho, Rebeldia e Cinema), num dos seus comments. Dessa vez consegui entender melhor a situação, pois o audio estava melhorzinho. A desconstrução contínua do olhar, que busca enquadrar a situação em estereótipos ou em situações familiares, que se mostram cada vez menos familiares. Não querendo dizer que percam a sua, digamos assim, banalidade, ou condição de ser corriqueiro, ou coisa desse tipo.

· Claustro, Eduardo Aguilar (13'46'', videoficção)

Tive que segurar as lágrimas um pouco no decorrer da história. Eu só consegui ler o filme de forma metafórica, expondo uma certa crueldade, e uma situação de total incapacidade de resposta. Essa incapacidade leva a uma multiplicação de abusos. As frustrações acabam sendo descarregadas em quem menos tem a capacidade de lidar com elas.

· O Quadro, Eduardo Aguilar (6'26'', videoficção)

Não foi o meu preferido, preciso confessar, mas é um belo filme mesmo assim. De novo a força de uma situação tão corriqueira, quanto o fim de um relacionamento.

· Lourdes, um Conto Gótico de Terror, Eduardo Aguilar (11'26'', videoficção)

Me pareceu um filme antigo, com elementos de filme mudo talvez? Adorei a personagem que expressa a dúvida (me pareceu), a dúvida sobre entregar-se, a dúvida quanto à fé, a dúvida quanto aos desejos reprimidos... De novo, me pareceu totalmente metafórico. Gostei bastante.

Para quem me conhece e não entendeu o porquê de eu estar aqui comentando esses filmes, explico: eu conheci todas as pessoas citadas acima, de uma forma ou de outra, por causa do meu primeiro contato com as Sessões Comodoro do Cinesesc, e depois de conhecer o blog Mondo Paura. Através dele conheci o blog do Edu Aguillar, e depois fui conhecendo e me relacionando virtualmente com um número de pessoas interessantíssimas. A sessão de hoje foi parte de um processo, como que um reencontro comigo mesmo. Fazer arte, falar de filmes, buscar projetos, ter paixão pelo que se faz... Muitos sentimentos que foram se perdendo no decorrer da minha pós-graduação, que fiz como que no automático, sem saber conscientemente porquê. Portanto falar desses filmes não é só falar de curtas muito interessantes, mas sim viver (e reviver) prazeres importantes para mim, na fase atual em que estou da minha vida. E um dos maiores prazeres que tive em São Paulo foi o tesão de poder compartilhar o meu interesse por determinado tipo de filme com outras pessoas. Coisa de nerd, talvez, mas que seja!

PS: O chato é sair do CCBB e ter que fugir correndo de um menino de rua que tentou me assaltar; muito medo de ser pego por ele ou pelos seus outros amigos! Mas cheguei em casa inteiro, apesar de nervoso... Acho que nunca vou me acostumar com essa cidade!

Angústia (conto)

Assisti hoje a vários curtas de André Kapel, André Pagnossim e Edu Aguillar, numa mostra no CCBB, São Paulo. Mas sobre isso escrevo mais num outro post. Vendo os curtas, comecei a lembrar-me de meus contos antigos, de terror (se é que terror é o rótulo adequado para eles). Venho tentando retomar a escrita de contos aqui no blog como exercício, e o último que saiu eu até que gostei (ver post O Começo). O conto que publico abaixo foi o último que escrevi antes de dar um tempo com a escrita literária. Isso já fazem uns 5 anos, no mínimo. Dedico esse post ao curta Claustro, de Edu Aguillar. No curta, é como se o narrador desse meu conto saísse da armadilha e conseguisse ter uma visão panorâmica das coisas, coisa que ainda eu não consigo ter. Bom, o caso é que me identifiquei com esse curta de forma bastante especial; e o conto que segue expõe, à sua maneira, as razões disso.

Angústia


... e caiu na água fazendo bastante barulho, que ecoou pelas paredes metálicas do recinto enquanto se debatia para não afundar. A queda e o contato brusco com a água fria o fizeram retomar a consciência rapidamente, acordando de um estupor. Não saberia dizer quanto tempo esteve fora de si. Seu coração batia intensamente, respirava com ansiedade e ao engolir grandes quantidades de ar para ingerir oxigênio, sentia dores pelo corpo todo, sentia seus ossos e sua pele cada vez mais nítidos com o frio que tomava lentamente conta do seu organismo, sentia como se tivesse sido espancado e seus músculos obrigados a trabalhar intensamente, enfim, sentia-se exausto. Não sabia se por causa do impacto emocional da situação na qual se encontrava, ou por causa de maus tratos que havia sofrido antes de ter sido jogado ali.

Tendo retomado sua consciência e mais calmo, já boiando com mais facilidade, não se debatendo na água como um desesperado, ele pôde colocar seu cérebro em ordem, esse cérebro que parecia não funcionar tão bem quanto um dia já funcionou, sentindo dores apunhalando também sua cabeça, como pequenas agulhas que, encravadas em sua carne, tocavam diferentes nervos devido aos seus movimentos constantes para manter-se acima do nível da água, alastrando inúmeras dores pelo seu crânio. Ponderou se havia batido muito a cabeça pela abertura na qual o jogaram, antes de finalmente cair na água, ou se era o frio o estava incomodando, ou se havia tomado alguma droga que o tivesse posto em estado adormecido; buscava freneticamente algum sentido em meio a um turbilhão de sensações que paulatinamente iam tomando conta de seu ser, à medida em que ele se dava conta de que estava jogado num buraco cheio de água, por razões que, pelo menos naquele momento, ele ignorava completamente.

Como não conseguia sentir o fundo com seus pés, esforçou-se para tentar boiar com o mínimo de esforço possível, dadas as suas dores e incômodos. Queria olhar à sua volta, queria descobrir onde estava, como havia parado ali, porque o haviam jogado em tal recipiente, calabouço, aquário... Seus olhos foram se acostumando à escuridão, e percebeu que pequenos focos de luz acendiam e apagavam lentamente nas paredes. Tinham uma luz fosca, como estrelas ou luzes brilhantes de uma cidade vistas através de um vidro embaçado de automóvel ou de uma janela, num dia frio, recoberta de vapor devido ao respirar morno de alguém. Porque estava lembrando disso agora, ali jogado como um cadáver inútil a apodrecer na água? Estaria ele tendo pequenas lembranças dos momentos que antecederam a sua chegada naquele buraco? Estaria ele apenas sendo enganado por seu cérebro exausto que, em contato com o frio incômodo da água pôs-se a recriar cenas reconfortantes para que ele se acalmasse?

Quanto mais ele buscava esquadrinhar sua mente mais ela doía, reclamava do esforço, e se negava a responder. As luzes, ele percebeu, pareciam embaçadas por causa da água em seus olhos. Faziam poucos segundos apenas que ele havia caído ali, e até se acalmar (o que ocorria devagar) ele estava quase a afogar-se, havia engolido um pouco de água e seus olhos, além de cansados, estavam encharcados.

As fontes de luz, ele pôde perceber com o passar dos minutos, realmente vinham das paredes. A julgar pelos sons que a água fazia ao bater contra elas, lhes pareciam feitas de metal. Olhou com mais atenção e percebeu que havia, na verdade, pequenos buracos nas paredes, que abriam e fechavam, num ritmo que se assemelhava a uma respiração lenta e pausada. Ficou intrigado pelo mecanismo, que levava paredes de metal a respirar, e imaginou de onde viria a luz que atravessava dos cômodos vizinhos aos dele e lhe iluminavam a desventura. Estariam os cômodos também cheios de água? Teriam eles outros “prisioneiros” guardados, estocados por alguma razão esdrúxula?

“Socorro!” Tem alguém aí?” ele gritou um pouco desesperado, um pouco curioso.
“Alguém está me escutando aí? Tem gente aí do lado?” Sua voz ecoava pelas paredes mas o eco não revelava nada mais do que seu pequeno cômodo particular. Ninguém o respondia, as luzes não mudaram de intensidade, a respiração do quarto permanecia lenta e pausada, como se ali não estivesse(fim)

2 de dez. de 2005

Uma história de violência

Sobre o recente episódio com o ônibus queimado no Rio de Janeiro, fiquei sem palavras. Mas queria comentar, e hoje achei as palavras adequadas numa reportagem da Folha de S. Paulo. Fica parecendo que nós, de outras cidades, estamos melhores, mas isso é ilusório. Talvez as chacinas e arrastões que ocorrem em São Paulo, por exemplo, sejam menos debatidos e divulgados. Ou não atrapalhem a circulação no eixo Rua da Consolação-Avenida Paulista-Rua Augusta, ainda.

Polícia iniciou ciclo violento no Rio com chacinas, diz estudioso

JOÃO PEQUENO, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA (02/12/2005)

Foi a própria polícia que começou a escalada da violência que culminou com o incêndio provocado por traficantes no ônibus da linha 350, na terça-feira. A tese é do geógrafo Jailson de Souza e Silva, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador da ONG Observatório de Favelas.Silva explica que ações desse tipo tiveram início no começo da década de 90, com chacinas como a de Vigário Geral, ocorrida em agosto de 1993, quando um grupo de extermínio formado por policiais militares, autodenominado Cavalos Corredores, matou 21 moradores daquela favela, na zona norte do Rio, para vingar a morte de quatro colegas do 9º Batalhão da PM (Rocha Miranda, zona norte do Rio)."O combate irracional da chamada "guerra às drogas" legitimou o uso da violência sob o pretexto do combate à criminalidade. Nessa estratégia -que em mais de 20 anos não teve uma consequência positiva sequer-, os moradores das favelas deixaram de ser cidadãos protegidos pela polícia para serem a população civil do território inimigo, contra a qual soldados cometem crimes de guerra", analisa o geógrafo.Silva prossegue: "Isso passou a valer tanto para policiais da banda podre quanto para traficantes que atacam moradores de áreas dominadas por facções rivais. Ou, como dizem, "do asfalto", em retaliação a ações da polícia, com a qual eles não têm nenhuma ligação, como foi o caso de terça. Mas o que eles fizeram não foi nada diferente dos Cavalos Corredores de Vigário", analisa.O geógrafo cita também as chacinas de Acari (11 mortos, em 1990), da Candelária (sete mortos, em 1993) e, neste ano, a de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense (29 mortos).Professor do Laboratório de Análises da Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o sociólogo Ignácio Cano aponta o caso da Baixada Fluminense e o do ataque ao ônibus como resultados de uma legitimação da violência, que levaria a ações cada vez mais extremas."Na Baixada Fluminense , não houve nem morte de policial, como em Vigário. Eles [os PMs responsáveis pela chacina] protestavam contra o comandante de um batalhão e, apenas por isso, mataram 29 pessoas que nada tinham a ver com o caso deles. E mataram 29 porque matar só duas ou três não chama mais a atenção. No incêndio de terça foi a mesma coisa. Queimar ônibus não choca mais, então os traficantes deixaram os passageiros presos para morrerem e, assim, mostrarem serviço", afirmou Cano.

16 de nov. de 2005

Manderlay


Atenção! Se você ainda não viu o filme, não leia o post! Pode estragar a sua experiência pessoal com o filme. Acabei de chegar em casa e escrevo agora, pois minhas curtas férias chegam ao fim e eu provavelmente terei pouco tempo para escrever depois. Além disso, queria ter um post com as impressões do momento mesmo, como é tradição desse blog. Várias coisas me passaram pela cabeça ao ver o filme: que fórmula chata essa que o diretor encontrou, será que teria a mesma força numa segunda vez? Será que o público vai "ter saco" para as elocubrações intelectuais do Von Trier novamente? Não que eu seja contra elocubrações, pelo contrário, mas pensei que pudesse haver um certo esgotamento, pela força que teve o primeiro filme. Passado o impacto de uma certa novidade formal de Dogville, qual seria o valor dessa trilogia sobre uma América abstrata e conceitual? Conceitual é uma palavra que diz muito sobre o filme, e é uma das razões que me fez gostar bastante desse, tanto quando o Dogville, ainda que esse filme seja um tanto irritante. Parece que o diretor quis ser mais direto desta vez, colocando até o mapa dos EUA logo no início, falando em datas (1933), tornando cada vez mais concreto esse país abstrato que era o do primeiro filme. Ou seja: em Manderlay, parece que Von Trier aparece mais, dá uma opinião mais contundente, diz com mais clareza a que veio com o seu discurso, torna-se menos metafórico, apesar de ainda bastante abstrato. Engraçado como as faces dos atores remetem a essa abstração: grandes estrelas do cinema norte-americano (a indústria de Hollywood, com toda a carga simbólica, sociológica e conceitual que esse termo carrega) atuando num filme abstrato, tornam os seus personagens como que evocações desse EUA concreto. Os atores encarnam bem mais que um personagem, eu quero dizer: quando vemos Bacall e Glover, por exemplo, vemos personagens que são maiores do que os atores, vemos pedaços dessa indústria sendo remixados pelo diretor, talvez seja isso o que eu esteja tentando dizer. E essa remixagem transforma o filme num produto ainda mais interessante do que somente as teses teóricas do diretor. Essa tese, dessa vez, remete a uma circularidade curiosa: o filme começa com um açoitamento, que não acontece por intervenção de Grace; e termina com Grace açoitando violentamente e passionalmente o mesmo escravo, após ela ter tentado tirar os negros de Manderlay da escravidão. Descobrimos que as leis racistas e escravocratas foram fruto de um acordo entre Senhores e Escravos, de forma a proteger a todos das mudanças impostas pela abolição, que traria certamente perigos inusitados para todos, alteraria hierarquias, mataria uns até. Não sei direito avaliar o que penso da tese do filme como um todo, pois mal digeri o que vi. Mas achei interessante esse filme passar num país semi-escravocrata como o Brasil, onde o acordo de cavalheiros mencionado acima funciona de forma exemplar, legitimado por todo tipo de discurso de boa convivência racial. Mas fiquei me questionando sobre a sociologia da coisa toda: um diretor sueco, protegido pelo aparato cultural de seu país, criticando o "império", produzindo discursos que poderíamos chamar de "contra-hegemônicos"...? Minhas experiências com europeus me deixam, de uma forma bem pessoal, ressabiado com um certo maniqueísmo, que constrói uma guerra cultural entre europeus civilizados e americanos violentos. Afinal, esses americanos, são todos regidos pela lei dos gângsteres, representados nesse filme pelos clichês que a própria indústria de cinema americana construiu ao longo dos anos, são violentos e pouco afeitos à cultura e à civilização... Sei não. No entanto, o filme é um poderoso discurso a respeito das políticas raciais advindas do escravismo, que são excelentes para pensar todo o continente, especialmente o Brasil. Uma pena que esse discurso mal chega aqui, e pouco conhecemos das lutas dos negros norte-americanos, ou mesmo das lutas dos negros brasileiros. Bom, nada mais chique do que ir ver um filme anti-racista e anti-americano sueco num cinema repleto de pessoas sócio-culturalmente seletas em São Paulo...

15 de nov. de 2005

Festival de cinema e vídeo Mixbrasil 2005




Aproveitando que estou com mais tempo essa semana, devido ao feriado, faço um post mais solto, relatando minhas experiências cinematográficas, sem tanta pretensão analítica (eu acho). Antes de mais nada, que fique registrada a minha frustração de ter perdido novamente a chance de ver o trabalho do Edu Aguillar, que tinha um curta no festival. Edu, me vende logo um DVD com todos os seus filmes, acho foda eu ter perdido de novo todas as exibições do seu curta! Enfim, tive a chance de ver, nessa que é a 13a edição do festival, dois filmes: Hellbent, um filme decepcionante; e Sugar, uma agradável surpresa.
Hellbent (escrito e dirigido por Paul Etheredge-Ouzts, EUA, 2004, 85 min.) é um slasher film clássico: um assassino em série persegue um grupo de amigos (nesse filme, todos gays), que buscam diversão numa festa de Holloween. A idéia parece interessante, mas achei um péssimo filme de terror, antigo, uma sucessão de clichês. Parece que a única coisa que segura o interesse é ver os clichês batidíssimos desse gênero serem vivenciados por rapazes gays. Para quem não acha coisa de outro mundo ver gays na tela, ou já pelo menos parou de corar a face quando vê cenas de sexo e romance entre homens, o filme tem pouco mais a oferecer, na minha opinião. Exceção seja feita a uma cena final, envolvendo a língua do assassino e o olho do protagonista. Algumas coisas me incomodaram, como o inevitável estereótipo dos gays malhados e obcecados por sexo e beleza. Não que pessoas assim não existam, mas enfim, irrita pela repetição constante, e pela cristalização de uma forma particular de se representar os gays. Chama a atenção, na tradução do gênero, a forma como a moralidade aparece no filme. Não estudei isso, mas creio que há uma relação forte entre esse gênero slasher e um certo medo social. Talvez não seja à toa que esses filmes aparecem numa época histórica determinada. Penso nos clichês: jovens, envolvidos em festas regadas a sexo e drogas, sendo eliminados um por um. A transgressão das normas acarreta a morte violenta. No caso do gay fica estranho, por serem todos, a princípio, transgressores. A tradução é feita, a meu ver, criando uma tentativa de casal moral, em oposição a personagens desviantes (o bissexual tarado, o modelo travestido, o romântico fraco). Parece interessante, mas não gostei do resultado.
Sugar (John Palmer, Canada, 2004, 78 min), por outro lado, prometia ser uma sucessão de clichês também: um filme sobre um menino que se apaixona por um michê, se envolvendo em drogas e prostituição. Como se os gays fossem fadados a esse papel trágico. Análise minha, pouco resolvida e pouco pesquisada: o gay, como preço para vivenciar a sua sexualidade desviante e patológica, paga o preço de viver no desvio, nas margens da sociedade, correndo todo tipo de risco, acabando por morrer no final dos filmes. Somente com a morte o homossexual é redimido do seu pecado, ter nascido aberrante. Sexo livre, drogas, prostituição, taras, violência, etc. O que eu vi, no entanto, foi um filme sutilmente poético, inteligente, uma história de amor complexa e poderosa. O filme, ao mostrar as dificuldades do michê em vivenciar o seu amor pelo menino, toca num aspecto importante da nossa cultura, que é essa impossibilidade constante de amar outro homem. O michê se recusa a encaixar-se no padrão "gay", e vive uma "amizade" com o menino. Numa cena maravilhosa, pede para que ele e o menino que se masturbem juntos, sem tocar-se. Não vivenciam um romance gay, mas experimentam essa sexualidade diferente. O menino, frustrado por não ter seu amante completamente, ainda tenta aproximar-se do michê, e com isso vivencia muitas das frustrações que tantos homens com esse desejo vivem. Ainda que a tragédia apareça no filme, ela acontece de forma a não julgar moralmente os personagens da forma como mencionei acima.

13 de nov. de 2005

Marcas da Violência


Ontem finalmente consegui assistir ao último de David Cronenberg, A History of Violence. Achei diferente de tudo que tinha visto dele, mas de uma forma mais interessante do que Spider, que me passou esse mesmo sentimento (mas de uma forma negativa). Calma fãs, eu não quero aqui desmerecer esse título; me considero tão fã do diretor quanto qualquer um. Mas acho que ainda não absorvi o Spider, nem entendi direito. No Marcas da Violência, há talvez uma narrativa mais fácil de ser digerida, há o gore, o sangue; há portanto coisas familiares que ajudam a criar alguma relação com a história. Como ando muito intimista nos últimos meses, o que eu vi no filme é uma belíssima história de desagregação. Não que a desagregação do mundo do protagonista seja ela mesma, de alguma forma, bela; mas a história, da maneira como foi contada, me tocou bastante neste ponto. Claro que essa leitura deriva de minha experiência pessoal recente, e talvez esse tema esteja mais em pauta na minha própria vida do que no filme, mas acho que não erro em dizer que se trata de uma narrativa de perda de referências, de fim de ilusões, de realinhamento de expectativas. A perda de um modo de vida idílico, por conta de uma casualidade totalmente imprevista, talvez coloque a questão da possibilidade mesma de se fugir do passado, de se fugir das trajetórias que construímos para nós mesmos. Podemos apagar erros do passado simplesmente negando tudo? Podemos nos tornar outra pessoa? Não como numa redenção, mas na forma de uma recriação do próprio eu? Enfim, questões quase psicanalíticas, que podem ter a ver com outros filmes do diretor (inclusive Spider, The Brood, etc.). Conversando com um colega meu, que estuda sociologia do cinema, fui lembrado da inevitável leitura política do filme. Ou seja, esse filme seria uma forma de Cronenberg falar da chamada era Bush (supostamente o diretor teria mencionado essa leitura numa entrevista ao Mais!, mas não me recordo agora). Ainda que faça todo o sentido, isso me remeteu a outro comentário que queria fazer, já que estou prestes a ir ver o Manderlay de Lars von Trier: a questão da crítica à sociedade americana no cinema e na crítica cultural em geral. Muitas críticas parecem ver um bom filme somente no fato deste ou aquele diretor estar criticando a truculência ou o imperialismo dos americanos. Sempre fui contra esse tipo de leitura simplista do contexto atual, até por que ele perde de vista o real perigo das doutrinas de Bush. Sobre esse tema venho falando aqui há algum tempo (ver o link Komentarista antigo, para posts sobre isso). Há todo um debate interno nos EUA sobre o fim da sua democracia, em torno de questões como a tortura e a interpretação da Constituição. É fácil querer ver críticas a Bush em tudo, mas pensando em Cronenberg, será que a metáfora faz sentido? Será que o pai é uma figura que representa a truculência, a violência dos EUA? Penso que a figura do protagonista é um personagem complexo, ambíguo, nem herói nem vilão. Seria a violência, disse aquele meu amigo, uma arma válida para manter um status quo qualquer favorável? Poderia haver redenção, ele continua, pela violência? Ou ela marca um processo de multiplicação, proliferação dela mesma?

31 de out. de 2005

Festival Internacional de Cinema de SP




Bom, mais um daqueles posts sem muito conteúdo, que servem mais para lembrar ao leitor que ainda se dá ao trabalho de vir aqui de que o autor não esqueceu-se de vocês. A velha desculpa esfarrapada: o excesso de trampo anda sugando minhas energias criativas, e não tenho tempo de postar nada interessante. No entanto, queria postar algo antes que o festival de cinema acabe e passe em branco por aqui. Até agora, só vi um filme: Os Primeiros na Lua, do russo Alexei Fedortchenko. Entrei sem saber nada, fugindo dos filmes mais "hypados", pois os Cronenbergs, Von Triers e etcs da vida estão sempre esgotados dias antes da exibição. Mas foi uma gratíssima surpresa. O filme mescla imagens documentais com ficcionalização, criando um ambiente bizarro no qual lenda e história são inseparáveis. Fala de um plano secreto do exército russo para enviar homens à lua, e do bizarro destino dos primeiros cosmonautas dessa missão fracassada. A história, de tão mirabolante, parece impossível, mas o filme consegue convencer o espectador de que até poderia ser verdade. Personagens reais dessa fase heróica e "adolescente" do programa espacial russo são entrevistados, e uma série de pequenos documentários feitos na União Soviética do início do século XX são misturados à narrativa. Fiquei maravilhado com a presença do cinema como instrumento de estado na URSS, tanto no quesito da construção de um imaginário de estado vitorioso (no estilo propaganda mesmo), como na forma de tecnologias de espionagem. Seria maravilhoso poder passar meses assistindo aos rolos e rolos de filmes estocados, e pensar mais sobre o cinema como construção de realidade, mas enfim... uma vida é curta para tantos projetos. Me parece que o filme usou uma técnica que fez de Baile Perfumado um dos meus filmes favoritos de todos os tempos: partiu de um filme real (nesse caso, algumas filmagens de Lampião) para construir uma narrativa semi-ficcional, relendo as imagens documentais e propondo uma interpretação do passado, sem com isso negar a sua condição de parcialidade. No final do filme pode-se ver algumas das imagens que inspiraram as partes mais belas do filme. Na imagem que ilustra o post, uma das cenas mais belas/chocantes, a do macaco "crucificado" em nome do progresso científico. E nessa imagem está o teor do comentário mais profundo que eu gostaria de ter feito: a construção do novo homem pela tecnologia (ciência, cinema, entre outras) acarreta sempre em alguma forma de sacrifício. O macaco, animal simbolicamente próximo do humano, serve de cobaia (pois não é humano) e de lembrete (por ser tão próximo, de que usamos sim humanos, sacrificamo-os assim como aos animais). O filme fala disso de uma maneira sutil e extremamente interessante.

11 de out. de 2005

O começo (micro conto)


E no começo havia isso, somente dúvidas, muitas, de todos os tipos e sabores. Saboreando as dúvidas, eu tentava decifrá-las, mas curti-las também, como petiscos, como pequenos doces, como aquele bolo de morango com creme que eu adoro pedir quando vou à padaria. Uma média, café com leite, clarinha, por favor. E um pão na chapa.

Eu acordei chorando. Soluçando. A destruição havia sido gigantesca, incompreensível. Era isso que mais me amedrontava: a inexorabilidade daquilo tudo. Eu andava pela rua, aquela mesma que havia sido cenário de tantas das minhas fantasias de cidade grande. A mesma pela qual andava sempre, de dia ou de noite; e quando ali andava, ali me sentia em algum lugar. Sentia-me parte de algo maior, interessante, que fazia sentido. Havia sido alguém, chegado a algum lugar, alcançado algum objetivo.

De repente, nada! Os buracos eram enormes, pois o terremoto havia sido devastador. Não foi um terremoto qualquer, que balançou somente a cidade; ele havia destruído grande parte do planeta Terra. Não me perguntem como eu sei, eu simplesmente sei: algo daquela magnitude não poderia ter acontecido somente aqui, deixando todo o resto intacto. Algo daquela magnitude precisaria deslocar tudo o que havia à sua volta, para conseguir causar tamanho estrago. Para destruir São Paulo, havia que se destruir também boa parte do Brasil; da mesma forma como essa destruição deveria causar um caos que se estenderia à toda América do Sul, e depois do Norte, e assim por diante.

Não, as televisões não noticiaram nada. E se o fizeram, eu não assisti, pois eu estava na rua no momento em que tudo aconteceu. Sim, estava lá, correndo todos os riscos possíveis. Explosões dos encanamentos de gás subterrâneos, que alimentam a cidade, poderiam ter me queimado todo, me desfigurando. Concreto poderia ter despencado de algum prédio, me esmagando, como a um inseto. Ora, um prédio inteiro poderia ter caído em cima de mim! Mas não, eu sobrevivi, ou algo desse tipo. Estava com Antoine, um amigo meu.

Amigo seria uma maneira polida de referir-me a ele. Quem tem amigos nessa cidade? Sei lá, talvez eu seja muito restrito na minha definição de amizade. Ele me ligava, queria sair comigo, eu nunca entendi o porquê. Acho que ele me usava como complemento às terapias que fazia. Eu nunca entendia o seguinte: se ele fazia terapia, por que continuava com todos aqueles dramas? E por que jogá-los em cima de mim? O que eu tinha a ver com aquilo tudo? E por que tudo o que eu dizia, quando era minha sincera opinião, o irritava profundamente? Por que as pessoas não conseguem simplesmente me deixar falar?

Pois por alguma fatalidade do destino, era com Antoine que eu estava quando o caos aconteceu, quando tudo tremeu, quando tudo caiu por terra. Acho que íamos até a padaria, deve ser isso. Íamos ter outro daqueles papos intermináveis sobre psicologia, antropologia, sociologia, astrologia, psicografia, arte cinética, arte conceitual, o inconsciente, a noite, o vazio, as drogas, o sexo, a falta do sexo, o amor, a impossibilidade do amor, a “des-necessidade” do amor. Era isso uma amizade? Eu só queria estar ali, conversando, aquilo já me bastava para alguma coisa. Ainda que eu não pudesse falar o que pensava, pois minhas palavras detonariam a ira do rapaz. Diria que eu estava sendo cruel, ou grosso, ou míope. Diria que eu não entendia do que ele estava dizendo. Diria que eu precisava me tratar.

Talvez precisasse mesmo, por agüentar a pessoa daquela forma, sem falar nada. Por que não estourar, não sair dali? Por que correr, arrumar-se, esperá-lo na frente do prédio, sorrir, abraçar, dizer que tinha saudades, buscar as palavras certas para cada momento, cuidar para que o ritual não se desfizesse em nenhum momento? Por que manter aquilo? Seria a falta absoluta de algo para fazer? De algum amigo? De alguma forma de amor? De auto-estima?

Acordei com lágrimas nos olhos. Estava tudo destruído. Havia sempre aquele momento, entre o dormir e o acordar, que não era nem um nem outro. Nesses momentos, me parece, é que tomamos consciência do que o sonho foi, do que se passou, e determina-se ali o que levaremos para o nosso dia. Comumente eu levo tudo, cada detalhe, cada porta aberta, cada chave guardada no bolso, cada expressão no rosto, cada sentimento. Principalmente isso: cada sensação, de cada momento. Incredulidade. Terror. Ausência de sentido. Dor. Simples desespero e dor e vontade de chorar por uma tragédia imensa, incomensurável.

10 de out. de 2005

Sobre armas e representação






Fui ver o último filme de Andrew Niccol, O Rei das Armas, em pré-estréia aqui em São Paulo. Enquanto assistia, minha mente fervilhava de questões o tempo todo, algumas das quais queria colocar aqui. Logo de cara fiquei pensando na ironia da História, de nos dar a chance de assistir a um filme sobre o tráfico de armas internacional, ao mesmo tempo em que somos bombardeados pela recente propaganda sobre o plebiscito. E já que falei disso, realmente não sei em qual lado vou votar, pois o jogo de insinuações e de pressões é pobre e maniqueísta de ambos os lados. Afinal, propaganda é propaganda, e sobre isso eu queria pensar aqui um pouco. O que diferencia um filme político de propaganda, no sentido de um discurso simplificado e que visa influenciar opiniões? Será que existe tal diferença, e será que ela é relevante (pelo menos em termos metodológicos)? Acho interessante pensar isso tendo em vista os posts passados, sobre filmes como Yo Soy Cuba, de Kalatozov (e também Viva México, de Eisenstein, ou até Triunfo da Vontade, de Riefenstahl)*. O filme de Niccol apela em alguns momentos para esquemas de filmes de propaganda política, daquela do tipo Duda-Mendonciana, ou pelo menos tive essa impressão. Nada que retire do filme seus méritos, que fique claro.

Dei-me conta que Niccol, em outros filmes, buscava temas que existiam na interseção interessantíssima da ficção científica com a política. Filmes como Simone (que discute as implicações do fim da diferença entre real e virtual), O Show de Truman (que fala de um experimento totalitário-capitalista, fruto de uma necessidade do mercado, um reality show megalomaníaco que se confunde com a nossa própria realidade midiática) e Gattaca (que ainda permanece um dos poucos discursos influentes sobre os dilemas que enfrentamos e enfrentaremos com a disseminação das técnicas de engenharia genética). Em O Senhor das Armas ele faz uma espécie de libelo contra o tráfico internacional de armas, mesclando imagens bastante interessantes (como a seqüência que acompanha os créditos iniciais do filme, mostrando o interior de uma fábrica de munições) com teorias sobre como os fluxos de armas corrompem governos e instituições.

Uma dessas imagens é particularmente irônica: Nicolas Cage, o traficante de armas, encosta-se numa estátua de Lênin caída no chão; em segundo plano, uma seqüência de tanques de guerra alinhados até o infinito. Aliás, há sempre essa questão da ideologia presente no filme. Se na Guerra Fria havia uma motivação ideológica para a corrida armamentista, depois de 1989 há somente o caos mercantilista. O filme baseia-se muito, no que diz respeito à imagem que passa dos traficantes de armas, num senso comum disseminado pela própria mídia, mas eu não saberia dizer em que medida aquelas questões factuais sobre o funcionamento do tráfico de armas são críveis ou não. Há a opinião de Niccol, claro, de que acima das ideologias há o capitalismo, corroendo qualquer outra base de valores que não seja a da acumulação. Há uma certa ironia política a respeito dos EUA também, numa cena “glauberiana” onde o ditador da Libéria diz ao traficante: “Bem-vindos à democracia”. O traficante fica espantado com a associação impossível entre o sistema político da Libéria e a democracia. Mas o ditador explica: depois do episódio da primeira eleição de Bush Jr., qualquer país como o dele poderia se dizer “democrático”.




Pensando armas e representação, pensei logo no filme de Bruce la Bruce, Raspberry Reich, que faz uma paródia pornográfica de filmes políticos da nouvelle vague e documentários soviéticos dos anos 1960. Penso em cenas como as primeiras, na qual a atriz, interpretando a líder de um grupo guerrilheiro, faz sexo explícito num cenário repleto de referências aos anos 1960. Entre outras coisas, vemos brincadeiras ótimas com esse imaginário revolucionário, como os atores praticando felação em revólveres. Apesar de fundamental, esse repensar das ideologias é pouco levado a sério. Mas me leva a especular, deleuzianamente, se um revólver nas mãos de um revolucionário cubano dos anos 1960 é a mesma coisa que o revólver que mata alguém durante um assalto; ou se a metralhadora folheada a ouro do filho do ditador da Libéria é a mesma coisa que a metralhadora folheada a ouro do traficante do morro carioca. Quais os agenciamentos maquínicos mobilizados em cada caso? Seria isso relevante ou não? Ajudaria isso a repensar esses filmes ou não? Os filmes nos ajudam a representar as armas, nos seus agenciamentos ideológicos ou não? Ok, tá parecendo discurso de estudante de filosofia da USP em 1968, termino o post por aqui!



*Ainda não cheguei a nenhuma conclusão sobre o que quero pensar a respeito do cinema político, mas como estou fazendo isso como hobby no blog, não pretendo chegar a nenhuma conclusão muito rapidamente.

3 de out. de 2005

Extra: The Boys From Brazil (Franklin Schaffner, EUA, 1978)




Acabo de ver esse filme, a respeito de um projeto para clonar Adolf Hitler e recriar o Reich a partir de um dos meninos... Fiquei espantado com a atualidade do debate ali feito: as técnicas de clonagem que conhecemos hoje funcionam da mesma forma como descrito no filme, numa seqüência assustadora. Um óvulo é retirado de uma doadora, e seu núcleo é destruído. Dentro desse óvulo implanta-se o material genético retirado de uma célula do organismo a ser clonado. Esse óvulo é então reimplantado na doadora, e se desenvolve até tornar-se uma cópia genética idêntica do doador da célula. As técnicas usadas para se criar a ovelha Dolly foram as mesmas: implantou-se o material genético de uma ovelha doadora adulta no óvulo de outra ovelha. Esse óvulo desenvolveu-se num clone da ovelha doadora do material genético.

Fascinante o cuidado com os detalhes no filme: havia uma amostra de 94 mães hospedeiras, todas inseridas em contextos familiares parecidos com aquele no qual cresceu Hitler. Mães amorosas, muito mais jovens que os pais; esses dominadores e sádicos. Isso tudo para que houvesse a maior probabilidade possível de que alguns desses Hitlers-mirins "vingasse" e adquirisse, além da composição genética do original, os seus traços de personalidade.

Outro fato interessante é a presença, no filme, de grupos judeus radicais, que são criticados pelo protagonista, um caçador de nazistas solitário, quase quixotesco. Esse personagem critica a adoção, por parte desses grupos, de táticas de terror, como uma aproximação entre eles e os nazistas. Ou seja, um filme futurista tanto na sua discussão científica, quanto nas crítics políticas.

De novo aquele meu tema recorrente: corpos e política. O cientista, explicando as técnicas de clonagem para o caçador de nazista, fica extasiado com a possibilidade de que alguém esteja clonando seres humanos. Imagine, diz ele, um mundo povoado por Mozarts, Picassos, gênios e artistas! Mas quem é clonado é Hitler, num programa secreto de ressureição. Fica a sugestão do anti-cristo, um Damien biotecnológico, tema recorrente em tantas análises do projeto Genoma. Recorrente na forma da crítica da imitação da criação por parte do Homem. que direito teríamos em brincar com a "criação"? Filmes como Gattaca, Código 64, e até alguns do Cronenberg, colocam essa questão filosófica, e cada vez mais prática: como regrar, imaginar, expressar, pensar o corpo manipulável? Ou a natureza manipulável? A quem cabe coordenar e ditar a ética desse novo mundo?

2 de out. de 2005

I tre volti della paura (Mario Bava, 1963)




Depois de tanto tempo, precisava vir aqui e tirar o atraso. A minha vida ultimamente anda agitada demais, e não ando tendo tanto tempo para reflexões maiores quanto antes, por isso não ando publicando nada. Mas acabei de ver um filme que queria deixar comentado, nem que seja para tirar a poeira do blog. Eu já havia gostado muito de Cães Raivosos, do Bava, quando o vi na Sessão Comodoro, e até escrevi um micro-conto por causa do filme. Dessa vez tive a chance de ver um filme delicioso, I tre volti della paura (ou Black Sabbath), baseado em três contos clássicos de terror. Além de ser um filme de Mario Bava, e de ser baseado em contos do tipo que eu mais adoro, o filme tem como argumento tratar de como o amor pode ter um componente aterrorizante. Ou, dito de outra forma, e já interpretando mais: como, por vezes, destruímos aquelas coisas que mais amamos.

Essa questão aparece de forma brilhante na primeira história, O Telefone, que me deixou nervoso do começo ao fim. Uma moça atende telefonemas macabros de um suposto ex-amante, que lhe ameaça matar, deixando claro que ele está observando cada passo da moça. Esta, assustada, liga para uma "amiga", após ler a notícia de que um ex-amante seu havia fugido da prisão. Ficamos sabendo que essa amizade havia sido interrompida pela moça, por alguma razão, e também logo vemos que há ali um triângulo amoroso bizarro: a moça assustada, a amiga rechaçada e o amante fugitivo. A amiga era (penso), na verdade, apaixonada pela moça, e parece que foi por isso mesmo que a moça afastou-se dela. Essa amiga, com ódio da rejeição, arma o esquema dos telefonemas, exatamente para conseguir uma reaproximação. A moça, ainda que não goste tanto de mulheres sexualmente, estava envolvida pela relação, que incluía um elemento de proteção. Quando ela se viu em perigo, logo esqueceu o rompimento e ligou para a sua amiga. Quando o desejo dessa amiga de rever a moça é satisfeito, e ela consegue consolar a moça, cuidar dela, e voltar a entrar em sua casa, ela confessa em carta a armação dos telefonemas. Mas tarde demais, pois o amante fugitivo aparece para acertar contas...

O amor como relação de poder, o amor como possessivo e macabro. Nesse conto, a moça é a parte frágil e dependente de um relacionamento doentio com a sua amiga. Ela nega para si, mas depende da outra, que se aproveita disso para satisfazer sua paixão. O amante fugitivo da prisão, e concorrente, odeia essa amiga por causa disso. A amiga da moça, que havia prometido jamais chegar perto dela de novo, não aceita ser rejeitada, e busca impor a sua vontade com uma armação. Lesbo-exploitation?

Pensei no quanto a primeira história me lembrou o Mojica Marins, especialmente no meu filme favorito, O Despertar da Besta. Ali o terror aparece na forma de coisas do contemporâneo, relidas numa narrativa fantástica: o LSD, as perversões sexuais, o desvio social, que nos anos 1960 estavam na ordem do dia dos debates públicos. Numa jogada ótima de meta-linguagem, por exemplo, Mojica filma um programa de televisão do qual fez parte, que o apontava (entre outras coisas) como parte dessa degeneração que tomava conta da cultura. No experimento concebido como argumento do filme, alguns estudiosos levam diversas pessoas das mais variadas origens sociais para experimentar sensasões da cidade. Mojica usa esse artifício para falar da São Paulo do seu tempo: drogas, contra-cultura (na forma de uma peça de Zé Celso), sexualidade e ele próprio, na forma do Zé do Caixão.

Ou seja, o terror, pelo menos em alguns filmes dos anos 1960, não seria mais interessante por tratar de questões como essas de "desvio social", como drogas, homo e bissexualidade, dissolução dos valores familiares tradicionais? Não seria uma forma narrativa de lidar com dilemas psico-sociais, com expressões do desvio e de zonas escuras, proibidas, que ainda assim vinham à tona? Não teriam nascido assim tantos dos nossos estereótipos a respeito do que configura uma boa história de terror? E por não pensarmos o que causa terror nos tempos atuais, por isso mesmo não conseguimos desenvolver nossos próprios gêneros de terror, que não sejam novas digestões de histórias antigas? Allan Poe, por exemplo, falava do seu tempo quando escrevia sobre hipnose, eletricidade e descobertas científicas, como parte do seu arsenal literário.

O segundo conto trata de uma espécie de vampiro, que nessa história são cadáveres que, após a morte, vêm beber o sangue daquele que mais amou. Amor, sangue, posse, morte, sexo, ambigüidade sexual: nada melhor para se fazer um filme! Achei interessante alguns detalhes: por exemplo, para expressar o poder hipnótico que o vampiro tem sobre sua vítima, Bava não recorre a nenhum efeito especial. Mostra o rosto do vampiro, depois corta para a moça levantando, e andando em direção ao seu destino trágico. A falta de explicação que esclareça o porquê dela fazer isso parece sugerir esse poder sobrenatural. O amor aqui aparece como paixão trágica, e a pulsão destruidora aparece na forma do Wurdalak, ou vampiro, e não na forma psicologizante ou "realista" da primeira história.

Mas o mais atraente, para mim, nesses dois filmes de Bava que vi, é a forma como ele aborda esses relacionamentos, sem perder de vista o que traz o espectador ao filme: o suspense, o terror. Os personagens são ricos, complexos, mas tudo isso aparece sem quase nenhuma explicação. Será que eu é que invento histórias mirabolantes para enredos simplistas? Bom, espero que não, acho que não! Mas ainda que fosse tudo mirabolação minha, talvez seja por isso mesmo que eu goste desses filmes: me instigam a pensar, a mirabolar histórias, coisa que eu adoro fazer e nem sempre tenho a oportunidade. Como que para preencher os vazios entre os fotogramas. De qualquer forma, fica confirmado que Bava é um dos meus favoritos...

18 de set. de 2005

Pensando Nova Orleans


[publicado no site www.salon.com; clique na imagem para ampliar]


Na falta de reflexões maiores, e na correria do dia-a-dia, queria deixar aqui marcada minha perplexidade com os acontecimentos em Nova Orleans. Mais do que a tragédia das mortes, e da destruição de um dos berços da cultura norte-americana, o que mais ficou martelando a minha mente foram as notícias da desagregação da ordem e da desumanização ocorridas nos dias posteriores ao furacão. Se ventos, chuva, alagamentos não fossem o suficiente, os habitantes daquela cidade foram submetidos a um dos episódios mais cruéis de que se tem notícia, dignos de qualquer noticiário da idade média. Sem nenhuma rede de proteção estatal, ou mesmo particular, que oferecesse um mínimo de condições para que os habitantes da cidade pudessem se proteger, e abandonados à própria sorte durante aproximadamente 5 dias, passando sede e fome, a população regrediu a um "estado da natureza" hobbesiano apavorante. Creio que todos ficaram sabendo dos detalhes sórdidos, e me abstenho de ficar aqui relatando-os. Mas são eventos assim que nos fazem lembrar a fragilidade dos laços de civilidade que nos unem. Talvez em lugares onde a condição humana é menos valorizada, onde a pobreza e a violência são partes tão marcantes do cotidiano, como no Brasil, tenhamos mais cuidado em manter viva a chama da sociabilidade. Talvez lá, certos de que estavam imunes a tamanho caos, o cuidado com isso foi menor, e a explosão da desordem foi mais exuberante. Como no episódio do canibal alemão, do qual sempre falo, eu preferiria não ter que pensar, não ter que lidar com episódios como esse. Pois eles colocam à prova todas as nossas convicções de que o ser humano ainda vive por alguma coisa além de si mesmo, de que há ideiais e uma moral que paira acima da luta de todos contra todos, ou acima do mero prazer e da satisfação mais pura das nossas pulsões. Infelizmente, precisamos sim pensar esses episódios como alertas, como chamados a uma constantes renovação de um mínimo de solidariedade e de preocupação com o próximo. Talvez eu seja um romântico idiota e ingênuo, e por isso fique chocado com algumas coisas, coisas que colocam em questão a própria possibilidade de se ter algum tipo de romantismo. Ainda não desisti de pensar assim, e creio que há muito o que ser dito ainda em prol de algum tipo de romantismo, num sentido mais amplo, menos individual.

6 de set. de 2005

Sobre a "crise"



A idéia para esse post me veio antes de ver a charge (publicada ontem, dia 05/09/2005, na Folha de S.Paulo), mas creio que ela ilustra de maneira interessante as coisas que andei pensando. Eu parei de comentar sobre esse assunto aqui, devido a uma dificuldade de assimilar e de digerir tanta informação, vinda de todos os lados, acrescida de uma incredulidade geral com o que estava acontecendo. Via meus amigos, outrora petistas apaixonados, fazendo discursos anti-PT dignos de qualquer tucano. Eu ficava sempre intrigado, pois nunca compartilhei de um certo sentimento de abandono da política que insiste em contaminar a todos com quem tento conversar sobre esse tipo de assunto. Ou melhor: eu tentava, a todo tempo, negar esse sentimento, ou lutar contra ele, afinal minhas primeiras experiências intelectuais sempre foram pensando a política, especialmente a transição democrática a partir de 1979. Enfim, pensar política, conversar de política, ler sobre política, para mim era sempre um exercício de otimismo, de construção de coisas novas e melhores, de pensar novos rumos para a sociedade em que vivemos.
Com a derrocada do petismo romântico, havia o papo do "silêncio dos intelectuais", tão adeptos da defesa de Lula e do seu potencial. Hoje, poucos negariam a verdade expressa na charge acima, de que Lula, enquanto símbolo, perdeu o bonde dos acontecimentos. O que eu me recuso a fazer é tomar isso como um fim da política, ou um fim da história do Brasil. Como se Lula, o último a ter o potencial de salvar a nação, levasse com o seu fracasso toda a possibilidade de política no país. Só nos restaria louvar a Jefferson, ACM e sua turma, paladinos da ética, na luta para destruir um governo de "ineptos e amadores". Termos tão difundidos pela mídia, afoita em enterrar toda a experiência do governo atual.
O que venho percebendo é que, com a confirmação de que a população em geral perdeu a confiança em Lula, o ímpeto dos oposicionistas arrefeceu. Debate-se agora se Serra ou Alckmin serão empossados, levados pelo clamor popular pela ética. Triste conclusão de um processo histórico tão importante: os tucanos aclamados como salvadores da pátria, e os petistas desmoralizados. O que não podemos é comprar a novela tal qual ela nos é apresentada pela TV, por mais difícil que isso seja. Não existem mocinhos e bandidos, e a política não acabou. Essa "crise", por vezes, me parece nada menos do que o pleno funcionamento da democracia, coisa tão rara e exótica por essas terras, que nomeamos isso de catástrofe política.
O fim dos messianismos é bom para a sociedade brasileira. O fim do romantismo que elegeu Lula salvador da pátria é um ganho, e não uma perda. A eleição de Lula desencadeou, a meu ver, uma série de eventos que culmina no processo que vivemos hoje, de luta aberta pelo poder. A intensificação dessa luta expõe a pobreza das nossas instituições, quando deputados renunciam para fugir à cassação, e quando Severino é réu e juiz de seu próprio processo investigativo. Deveríamos estar pensando e discutindo os rumos a tomar para frente, no curto e médio prazo, no sentido de intensificar a democracia, facilitar processos de investigação, e não perder meses e meses com análises e libelos anti-petistas. Só quem foi ingênuo de achar que o PT era virgem e incapaz de erro sente-se traído a ponto de perder a crença na política. A política existe independente disso tudo, e governantes continurão a se eleger (deus queira! Antes isso do que tomarem o poder por outras vias), quero queiramos, quer não.
Uma lição valiosa que precisamos aprender é a de que democracia envolve disputas de poder. Essas precisam ser regradas, aperfeiçoadas, e não abafadas ou desestimuladas, como algumas propostas de reforma política parecem querer promover. A eleição de Lula e da esquerda brasileira não é somente a prova da incapacidade desse grupo de governar: isso é simplista, e serve para legitimar uma continuidade perigosa e danosa para a sociedade. Pois foi somente por que houve a eleição de um grupo diferente que foi possível ocorrerem brigas, que levaram ao processo purgatório pelo qual passamos. Uma democracia saudável saberá explorar essas brigas para promover o bem-estar e o acesso da demos à pólis.

4 de set. de 2005

Videobrasil 15 - Sesc Pompéia - São Paulo


15º FESTIVAL INTERNACIONAL DE ARTE ELETRÔNICA Videobrasil
SESC POMPÉIA - 6 a 25 de setembro

[texto do release do evento]



Com três semanas de duração, um novo formato de mostra competitiva e a maior programação já dedicada à performance no país, começa dia 6 de setembro, no Sesc Pompéia, o 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, realizado pelo SESC São Paulo e pela Associação Cultural Videobrasil. Com foco na produção do eixo sul das artes, o Festival reúne 130 obras recentes de países da América Latina, África, Sudeste Asiático, Oriente Médio, Europa do Leste e Austrália, além de nove performances ao vivo, dez mostras retrospectivas de vídeo, seis mesas de debate, três noites comandadas por VJs, cinco lançamentos, nove encontros com artistas e um workshop de performance. Por três semanas, ocupa uma estrutura projetada especialmente pelos arquitetos André Vainer e Guilherme Paolilello, com auditório de 190 lugares, Play Gallery (conjunto de espaços expositivos com telões e telas de plasma), midiateca (onde o público terá acesso a programas já exibidos e outros do acervo do Festival), bar e uma Livraria da Vila. Entre artistas, curadores, jornalistas e teóricos, o 15º Videobrasil reúne 196 convidados de mais de 20 países.

Panoramas do Sul
Pela primeira vez, a mostra competitiva do Videobrasil se divide em três segmentos, que serão exibidos cada um em uma semana do Festival. Estado da Arte (6 a 11/09) tem obras de artistas consagrados; Investigações Contemporâneas (13 a 18/09), pesquisas em vídeo; e Novos Vetores (20 a 25/09), trabalhos de jovens realizadores. A divisão reflete a diversificação da arte eletrônica do eixo sul, marcada "pela intenção de produzir sentido, ainda que de formas não-lineares", segundo Solange Farkas, criadora e curadora do Videobrasil. Karim Aïnouz, Kiko Goifman, Marcellvs L., Cao Guimarães, Mania Akbari e o estreante Daniel Lisboa, censurado em festival baiano, estão entre os autores que participam de Panoramas do Sul.

Performances
Gênero de caráter fortemente político, que ressurge com força no cenário contemporâneo, a performance é o tema curatorial do 15º Videobrasil, que reúne ao vivo exemplos de vertentes importantes – da intervenção urbana, marca do coletivo Frente 3 de Fevereiro (6/09) e da artista americana Coco Fusco, às performances que derivam das artes plásticas, como na obra do grupo Chelpa Ferro (20/09), do artista Marco Paulo Rolla (22/09) e da dupla Detanico Lain (17/09). A indonésia Melati Suryodarmo (8/09), discípula de Marina Abramovic, mostra seu ato baseado em autocontrole; a queniana Ingrid Mwangi usa voz e corpo em "My Possession" (15/09). O caminho do vídeo à performance é exemplificado pelo grupo feitoamãos/F.A.Q. (13/09) e por Eder Santos e convidados (24/09).

Mostras
Dez programas de vídeo, que se espalham pelas três semanas do Festival, compõem a maior retrospectiva de perfomance já exibida no Brasil. As mostras atestam a força da obra da artista Marina Abramovic, referência no gênero; da produção do centro de difusão nova-iorquino The Kitchen, que abrigou performances de Laurie Anderson, Robert Wilson e grupo Fluxus, entre outros; e do próprio Videobrasil, que reúne 18 performances que comissionou ou exibiu desde a década de 80, incluindo trabalhos de Waly Salomão, na Antologia Videobrasil de Performances, que também é lançada em DVD.

Zona de Reflexão
Atividades que atravessam toda a programação tentam adensar a reflexão no evento. Artistas e pequisadores discutem mecanismos de intercâmbio e outros tópicos no Ciclo de Debates; as VJ Nights reúnem artistas de nacionalidades diversas em sessões de live-image; o artista Marco Paulo Rolla e o professor Marcos Hill, do CEIA (Centro de Experimentação e Informação de Arte), comandam um workshop de performance; e laboratórios introduzem ao conteúdo do recém-lançado banco de dados Videobrasil On-Line. Esse eixo inclui ainda o lançamento do "Caderno Videobrasil", publicação dedicada à reflexão sobre arte contemporânea.

Realizadores
O 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil é um projeto da Associação Cultural Videobrasil realizado pelo SESC São Paulo. Principal centro de referência de arte eletrônica do Brasil, a ACV (www.videobrasil.org.br) produz, além do evento bienal, mostras e curadorias nacionais e internacionais de vídeo e arte eletrônica, como a recente Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, no MAM da Bahia; o projeto FF Dossier, que perfila artistas emergentes na Internet; e a série anual de documentários VCA, sobre artistas do circuito sul. Mantém um acervo de quase quatro mil títulos, desenvolve pesquisas e atividades educacionais e está lançando o Videobrasil On-Line, extensivo banco de dados sobre a arte eletrônica do circuito sul. A ACV tem o apoio do Prince Claus Fund, fundo holandês que financia e apóia projetos culturais e de desenvolvimento em vários países.
Solange Oliveira Farkas é uma das articuladoras mais ativas da produção de arte eletrônica do circuito sul. Diretora e curadora do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, que criou em 1983, preside a Associação Cultural Videobrasil, que realiza, além do Festival, documentários, publicações, projetos e curadorias de arte eletrônica exibidas pelos principais festivais do gênero no mundo. Integra o júri do Nam June Paik Award, o conselho para o programa de atividades do Prince Claus Fund, da Holanda, e os conselhos curatoriais do Paço das Artes e do Centro Cultural São Paulo. Em 2004 recebeu o Prêmio Cultural Sérgio Motta, em São Paulo, pela contibuição à arte eletrônica brasileira. Em 2005, realizou como curadora a Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea em Salvador (BA), lançou o banco de dados Videobrasil On-Line, e dirige o 15º Videobrasil e o quinto documentário da série VCA, dedicado à artista Coco Fusco.
O SESC São Paulo vem apoiando projetos da Associação Cultural Videobrasil desde 1992, tendo viabilizado, entre outros, a série Videobrasil Coleção de Autores e o banco de dados Videobrasil On-Line. "Há vinte e três anos, o Videobrasil tem sido pioneiro na valorização de novas mídias e no potencial por elas sustentado na leitura e interpretação das múltiplas faces da sociedade contemporânea", diz Danilo Santos de Miranda, diretor regional do SESC São Paulo. "Esses são princípios caros ao SESC São Paulo, seja por incitarem o debate, seja por contribuírem para a construção contínua do conhecimento. O 15º Videobrasil é uma iniciativa marcada pelo vínculo arte-tecnologia que, a cada dia, encontra-se mais e mais inserido no cotidiano das pessoas. Daí sua relevância em incentivar novas percepções, ativar novas sensibilidades e estimular a melhor compreensão da arte contemporânea."

Serviço

O 15° Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil acontece de 06 a 25 de setembro de 2005 no SESC Pompéia (Rua Clélia, 93, tel: + 55 11 3871-7700, São Paulo).
O SESC Pompéia funciona de terça a domingo, das 10h às 22h. As atividades do Festival acontecem de terça a domingo, nos seguintes horários: 10h às 21h (exposições, encontros, debates, mostras de vídeo, livraria e bar); a partir de 21h (performances); e 22h (VJ Nights). Toda a programação do Festival é gratuita, mas os ingressos para as performances e VJ Nights devem ser retirados com antecedência nas bilheterias da Rede Sesc. A disponibilidade está sujeita à lotação dos espaços (Auditório: 191 lugares; Choperia: 800 lugares; Teatro: 330 lugares; Play Gallery: 120 pessoas)
Atendimento à Imprensa:
FCF Comunicação
Luciana Gomide - tel (11) 3032.3057 e (11) 9181.4024 ou fcfcom@uol.com.br

31 de ago. de 2005

O imperativo da realidade



Comecei a pensar sobre isso inspirado, primeiramente, na questão dos manifestos que comentei abaixo, o Dogma 95 e o Cinema de Trincheira. Além disso, houve a entrevista interessantíssima com Lars von Trier no caderno MAIS!, da Folha de S. Paulo do domingo passado, que está falando bastante do Manderlay, próximo filme do diretor, segunda parte da trilogia iniciada por Dogville. A primeira questão é: qual é a necessidade da arte e do pensamento (o cinema sendo apenas uma manifestação entre muitas) de se ater ao real? Qual a relação entre “realidade” e a arte a ser feita? Ou seja, qual o sentido de se instaurar um Dogma no qual a arte do cinema estaria, supostamente, deixando de lado o artificialismo e aproximando-se de uma estética mais “realista”? Ou não é disso que se trata o manifesto? Como se vê, estou aqui mais especulando do que qualquer outra coisa, como forma de aquecimento para o filme, talvez. Mas essa questão não diz respeito a um filme somente, mas ao momento que vivemos, como um todo.
Pensemos o filme Dogville, no qual o diretor Lars von Trier brinca de forma especialmente interessante com o real e a metalinguagem a respeito do real e do cinema: a forma de filmagem coloca em questão o realismo, na medida em que utiliza um cenário imaginado, ausente, composto somente por marcações num palco. O diretor, mesmo nunca tendo pisado em solo americano, se propõe a discorrer sobre uma vila americana, o que muitos leram como crítica aos Estados Unidos (me irrita um pouco esse consenso entre os críticos, já que poderíamos ler o filme de tantas outras maneiras, mas enfim...). O filme tem muito do dramaturgo Bertold Brecht, na medida em que é inspirado em temas morais, e na medida em que faz o jogo entre fantasia e realidade. Em Brecht especificamente, pelo pouco que sei desse autor, esse jogo busca, na forma de interpretação dos atores e na dramaturgia, buscar uma crítica da superestrutura, da ilusão trazida pelo teatro, levando a uma aproximação com a realidade (leia-se luta de classes). Nesse caso há uma concepção clara do que é realidade e do que é ficção (ou superestrutura, ideologia).
No caso de Dogville, há a filiação ao Dogma, há a evocação de Brecht, há o jogo do cenário evocando o teatro (em contraposição ao audiovisual talvez?), há o uso da câmera digital (em contraposição à película, com todos os significados que isso pode ter)... Mas será que existe essa possibilidade, hoje, de evocação da “realidade”? Ainda que utilizemos menos recursos técnicos, menos efeitos especiais, não será a narrativa áudio-visual sempre narrativa, portanto construída? E no caso de Lars, há ainda um outro lado, que me interessa, a questão do político.
Como fazer filmes políticos hoje em dia? Precisamos estar filiados ao marxismo, maoísmo, ou qualquer outro “ismo” postulado pelo cinema engajado? Por que não pensar Lars von Trier como político, ainda que cinema, ainda que narrativa? Não há a necessidade (talvez nem a possibilidade) de uma aproximação com o real para que se faça arte engajada. Se fosse assim, Dogville seria impossível. Dogville é uma construção, ainda que, na sua forma narrativa, o filme faça evocações o tempo todo de aproximações com o real. O real, na sua articulação com a decepção/ilusão, é objeto da narrativa, tanto quanto os dramas de Grace. O interessante, para concluir, é manter viva a possibilidade da especulação como forma de crítica e até de engajamento com a realidade. Críticas utópicas, formulações lingüísticas e artísticas, têm seu valor na dinâmica social e política da sociedade. Somos movidos em boa parte por idéias, e nesse campo sempre há muito que se fazer.

28 de ago. de 2005

Festival Internacional de Curtas - SP: sobre manifestos




Estava eu aqui querendo começar a escrever sobre a sessão Dark Side do Festival Internacional de Curtas, que está rolando em São Paulo, quando começo a pesquisar imagens para colocar no post. Procurando acabei me perdendo, e me perdendo na rede acabei encontrando o site Cinema de Trincheira [http://cinemadetrincheira.com.br], que contém informações sobre o curta 6 tiros, 60 ml, de André Kapel, exibido na sessão. Encontrei lá também um manifesto que desconhecia, cuja proposta reproduzo abaixo:

O projeto de cinema independente denominado "Cinema de Trincheira" se suporta em um manifesto que atua como proposta de trabalho, procurando resumir a produção cinematográfica ao seu essencial, isolando o set de filmagem e mantendo só o necessário a produção, bem como buscando trabalhar com técnicas que fogem do tradicional. Trabalhar com temas que saiam da mesmice que o cinema nacional se tornou, produzindo um material dedicado a quem vai assisti-lo e evitando egocentrismos desnecessários, ainda que se mantenha uma característica identificável em cada um.

Não conheço muito sobre os detalhes da coisa toda, mas me parece uma proposta influenciada pelo Dogma (tema da segunda metade do post). Eu desconfio, mas ao mesmo tempo sou bastante seduzido por manifestos. Pelas mesmas razões pelas quais sou seduzido pelo que chamo de cinema político, que acho sedutor e perigoso. Pois um manifesto é um chamado à ação, é um estabelecer de regras e propostas, é um ato de vontade sobre as coisas. Isso é sedutor, a meu ver. O perigo que ronda são as simplificações e reduções necessárias para que isso ocorra. Como não sou especialista em cinema, não vou avaliar a pertinência ou não do manifesto, mas sou totalmente a favor da ação, e da busca de alternativas.
Coisa que o filme de André Kapel consegue, na minha opinião, mas talvez não pelas razões que ele expressa conscientemente. Algumas coisas do filme eu não gostei, como alguns tiques à la Tarantino (ou foi só impressão minha?); me parece que ele se dá melhor quando se solta mais. Apreciei demais a seqüência no elevador, e a atriz consegue levar a coisa maravilhosamente, eu achei. Meu amigo tunisiano (que dirigiu o filme Pics, também no festival) puxou papo bem no final do filme e eu acabei não entendendo direito como foi a “explicação”, mas vou cobrar do diretor pessoalmente se puder. Parece que há um longa-metragem feito com base nesse manifesto, Pólvora Negra, mas não diz no site se ele vai ser exibido ou se já foi, fiquei curioso. Dessa sessão, fiquei estarrecido com a simplicidade aterradora do filme Os Dez Degraus, de Brendan Muldowney. Lembrou-me os melhores contos de terror do século XIX, minha primeira escola nesse tipo de história. Adorei também o Organik, ainda que ele seja tão parecido com o Possessão (ver análise de Marcelo Carrard no Mondo Paura). Coagula foi como começar a comer um doce muito gostoso, que de repente me foi tirado da mesa: achei curto demais, queria MUITO mais, enfim... A Porta, de Rita Curvo, achei maravilhoso, na sua estética e na forma como conduz a história, também deveria ter sido muito mais longo.


10 anos de Dogma



Ontem fui, a convite de amigos, assistir à sessão hypada com 3 curtas do movimento Dogma 95. Ansiedade, de Christoffer Boe. Delicioso de assistir, fotografia perfeita, atuações maravilhosas. Me pareceu uma exploração de um relacionamento um tanto neurótico. A forma como a cena de uma peça dá coerência a todo o conjunto me pareceu genial. Fiquei literalmente estupefato com a beleza desse curta, melhor do que a maioria das coisas que ando vendo ultimamente no cinema.
Isso sem falar na emoção de assistir O Menino Que Andava Para Trás, de Thomas Vinterberg. O menino que atua no papel principal é realmente um achado, uma beleza física impressionante. Engraçado como há um clima de nihilismo no ar: meninos de 9 anos desmaiados de bêbados, famílias despedaçadas. A cena na escola me parece antológica: há uma tal falta de laços de intimidade e de sentimento entre as pessoas que leva a uma desconexão total com o mundo. A musiquinha de boas-vindas cantada pelos alunos acentua ainda mais essa dissonância entre o que as coisas deveriam ser e o vazio que elas realmente possuem. Essa desconexão talvez leve o menino a ficar perturbado, ainda mais do que somente a tragédia que acomete a família. Talvez seja essa a premissa do seu outro filme, Festa de Família, mas não saberia dizer em detalhes sem rever o filme. O terceiro curta dessa sessão, Final de semana perdido, não me agradou muito; acho que depois de me identificar demais com os dois primeiros, estava sem fôlego para o terceiro. Bom, fechando em tom mais pessoal, a melhor parte de tudo isso foi poder participar de algo interessante e conhecer pessoas geniais e emocionantes, especialmente na sessão Dark Side. O terror é militância, dizia o cara ensangüentado que apresentou a sessão; o mais legal é compartilhar essas experiências numa cidade cada vez mais alheia a isso tudo.

27 de ago. de 2005

Cinema político, 2005




Enquanto não me inspiro para escrever nada original, repasso essa notícia maravilhosa e bizarra que li hoje na BBC Brasil, no UOL: [http://noticias.uol.com.br/bbc/2005/08/27/ult2363u4196.jhtm]


27/08/2005 - 15h36
Rebeldes indianos fazem filmes pornográficos
da BBC, em Londres


Rebeldes no Estado de Tripura, no nordeste da Índia, estão fazendo filmes pornográficos para levantar dinheiro para sua campanha separatista, de acordo com autoridades.De acordo com a polícia, a informação veio de guerrilheiros da Frente Nacional de Libertação de Tripura (NLFT) que se renderam.Eles dizem que rebeldes estão forcando mulheres e alguns homens de tribos da região a participarem dos filmes.Os filmes são então dublados para serem vendidos na Índia e países vizinhos.

Áreas remotas

Os ex-guerrilheiros da NLFT disseram para a polícia que seus líderes não só abusaram sexualmente de muitas meninas de tribos que foram recrutadas para o exército rebelde, mas também as usaram - e alguns homens da guerrilha - para produzir filmes pornográficos."Os filmes foram encontrados dublados em birmanês, bengali, tailandês e hindi, sugerindo que eles estão sendo vendidos para muitos países da região", disse Ghanshyam Murari Srivastava, chefe da polícia de Tripura.Ele disse que a polícia recuperou uma série de DVDs pornográficos mostrando jovens de várias partes do Estado, inclusive áreas remotas como Amarpur e Gandacherra.DVDs semelhantes também foram confiscados de bases da NLFT em Bangladesh invadidas pelo Exército, de acordo com o chefe da polícia.



Produto final

Investigações em produtoras de vídeo em Trupura confirmaram o que os ex-guerrilheiros disseram."Nós recebemos encomendas para processar filmes pornográficos filmados em áreas tribais remotas de tempos em tempos", disse o proprietário de uma produtora na capital do Estado, Agartala.Ele não quis se identificar."Nós recebemos muito mais dinheiro, muito mais do que nossos preços normais, para processar esses filmes e entregar um bom produto final.""Nós sabemos que os insurgentes estão por trás desses filmes. Quando processamos o estoque inicial, podemos ver meninos com rifles automáticos e revólveres puxando as meninas, mas temos que cortar isso e nos concentrar apenas no sexo", disse o proprietário."O dinheiro é muito bom e nós não achamos que é correto questionar os insurgentes, de qualquer maneira", disse.O mais recente vídeo pornográfico que vem sendo procurado por jovens em Tripura é chamado "Nossas experiências na língua Tripuri".Como em um filme normal, tem heróis e heroínas.Inicialmente parece ser apenas um filme de amor com meninos e meninas de mãos dadas e passeando por lagos e árvores. Mas logo o vídeo começa a mostrar cenas dos atores se despindo e fazendo sexo.Já que os jovens de tribos de Tripura têm feições semelhantes às dos mongóis, os filmes podem se passar por feitos em qualquer lugar do sudeste asiático.

Atrizes

Insurgentes que se renderam dizem que seus líderes sempre abusaram de mulheres tribais, tanto nas vilas quanto das que foram recrutadas para o exército rebelde.Um estudo feito por dois pesquisadores, Meenakshi Sen Bandopadhyay e Jayanta Bhattacharya, documentou em detalhes os abusos sexuais feitos pela NLFT."Os rebeldes da NLFT não permitiram que uma garota tribal do norte de Tripura se casasse porque queriam que seus soldados se aproveitassem dela. Os pais da menina estavam impotentes porque moravam em uma área remota", disse o estudo.Mohman Reang, um dos ex-guerrilheiros, disse: "Uma atriz tribal chamada Anita Reang que fez o papel de heroína em alguns dos filmes precisou fugir de sua vila porque um alto líder da NLFT queria sequestrá-la."Mas enquanto forçar mulheres tribais a fazer sexo ou levá-las para campos rebeldes não é novidade, usá-las para filmes pornográficoa certamente é."Isso parece ter começado há um ou dois anos", disse o jornalista local Manas Paul, que levou o caso às autoridades.

Mais corpos e política: a televisão



Ingrid, a 35-year-old accountant from Aurora, CO, is tired of feeling invisible because of her appearance. For years she's been passed up for jobs because of her looks, particularly her bad skin and wild and frizzy hair. Many times employers have scheduled job interviews with her, but once they saw her, they would turn her away and claim they weren't hiring. Ingrid's dream is to own an accounting consulting business. However, before she can help business owners get a handle on their finances, Ingrid wants an extreme makeover to help her get a handle on her overall appearance. *


Estava hoje assistindo a um programa de televisão, Extreme Makeover (exibido no Brasil pelo Canal Sony, e nos EUA pela rede ABC), e percebi que meu argumento sobre como Kalatozov e Cronenberg têm tudo a ver estava sendo encenado ali, diante de meus olhos. Ou seja, o encontro aconteceu, e acontece faz tempo, e está cada vez mais visível e importante. O programa parte de uma premissa bastante simples: algumas pessoas são escolhidas e o programa lhes paga cirurgias plásticas, para que mudem o seu visual, "melhorando" assim sua aparência. Num mundo cada vez mais dominado por imagens, a nossa aparência exterior é cada vez mais um aspecto fundamental da nossa identidade. Quem mora em grandes centros urbanos talvez sinta isso mais de perto, mas o fenômeno ocorre em toda a sociedade, e no mundo inteiro. Política. Quem não tem o visual correto, ou desejado, se vê claramente em desvantagem na sociedade. Prazeres. Muitas pessoas querem simplesmente brincar com seu visual, ou agradar aos seus maridos e esposas. A questão renderia muitos textos, e quero aqui apenas evocá-la, para me conter dentro do espaço limitado de um blog e do seu ritmo de leitura. Não me canso de assistir o programa: ver a emoção das pessoas quando os curativos são retirados é grotesco e, ao mesmo tempo, me toca, pois aquele tipo de felicidade é realmente extrema, a experiência como um todo é extrema, e ao mesmo tempo cada vez mais banal. Quando uma mulher se vê com um novo nariz, ou novos dentes, ou sem aquela barriga flácida, ou com novos seios. Ou aquele cantor falido que, após a sua transformação, se sente capaz de conquistar o mundo. Podemos analisar a visualidade do programa, como quando se apresenta a equipe de cirurgiões plásticos. Me faz lembrar jogos eletrônicos, quando os diferentes personagens são apresentados, ao lado sendo expostos as suas qualidades e super poderes. Ou mesmo propaganda política, quando vemos o rosto sorridente do candidato, ao fundo uma música emocionante. Bizarro ainda é o momento da "revelação" da pessoa transformada aos seus amigos e parentes: a pessoa surge por detrás de uma cortina, num palco ou escadaria, fazendo a típica "entrada triunfal". É o triunfo da imagem sobre o corpo? Do corpo e da imagem sobre a política? Da televisão sobre nossos corpos? Do homem sobre as suas limitações? Valores impressos na carne.


* [fonte do texto e imagens: site oficial do programa Extreme Makeover: http://abc.go.com/primetime/extrememakeover/bios/92366.html]

20 de ago. de 2005

Políticas: dois filmes



Tive, há alguns dias atrás, a chance única de ver dois filmes fenomenais num curto espaço de tempo. Estava esperando há muito para vê-los, e aluguei os dois DVDs. Por causa disso, uma casualidade, achei interessante comentar os dois filmes juntos, pois creio que podemos pensar em ligações entre ambos num nível além do prazer que tive em assisti-los próximos um do outro. O primeiro é Eu Sou Cuba (Mikhail Kalatozov, URSS/Cuba, 1964, 140 min). O segundo é Videodrome, (David Cronenberg, EUA, 1983, 81 min.) Ligações em termos de serem dois filmes políticos, mas em diferentes sentidos.
Assistir a Eu Sou Cuba foi como uma revelação. Sempre tive curiosidade a respeito de filmes políticos, e a maioria dos filmes políticos que vi eram de diretores ocidentais idealizando uma revolução que nunca aconteceu. De Glauber a Godard, filmes morais e bastante teóricos/metafóricos sempre me fascinaram. Essa possibilidade da revolução, o idealismo e o otimismo com o homem e a sociedade, essa vontade de promover mudanças que trariam, sim, um mundo melhor e mais justo. Nos tempos pós-petistas em que vivemos, somos obrigados a carregar uma dose saudável de cinismo ao encarar construções de sentido como essas. Ainda assim, a beleza e a poesia desses filmes, a meu ver, permanecem inspiradoras.
Eu Sou Cuba é uma obra de arte inquestionável, pela força da sua visualidade, pela maestria da sua técnica, pela sua poesia. Jamais vi nada tão interessante que, conjugando o imaginário cubano, uma certa lamentação a respeito da condição subdesenvolvida do país, conseguisse falar que a revolução aconteceu, sim. O filme é maniqueísta, e fala com a autoridade de quem tem a superioridade moral dos justos e dos corretos. Mas a poesia dos textos, falados em espanhol e ditos novamente em russo, me parece quase universal, nos sentimentos de tristeza esperançosa que eles exprimem. Essa vontade incessante de acertar, de melhorar a vida. O filme termina antes de Havana ser tomada, e fica-se com aquela evocação de um evento magistral, gigantesco, que não vemos de fato. A revolução hoje tornou-se uma ditadura pobre e agonizante, talvez repleta dos pecados denunciados nesse filme: prostituição, dominação norte-americana, colonização cultural. Mas é incrível imaginar como a rivalidade entre a União Soviética e os Estados Unidos, causadora de milhões de mortes, espremeu pura beleza de um povo localizado em ponto tão estratégico. É um filme que lembra Terra em Transe; mas é como se Glauber tivesse ido a Cuba, tomado anabolizantes e treinado incessantemente para uma competição internacional. Não desmerecendo Glauber, mas parece que há uma escola na qual ele pode talvez ser inserido, deixo isso para os especialistas.

E falando em filmes políticos, tema que adoro, comento Videodrome nesse registro também. Nesse que é talvez um dos melhores e mais poderosos de seus filmes, Cronenberg constrói uma narrativa a respeito da "nova carne", fruto de uma conjugação entre seres humanos e a televisão, que seria quase que a sublimação do corpo, transformado em dados. Se eu fosse comentar o filme seria uma tese, e aliás o filme trata de tudo que gastei 4 anos estudando. O interessante é pensar, de forma especulativa como cabe nesse espaço, em Cronenberg como diretor político. Não no sentido que faz de Glauber ou Kalatozov políticos, mas num sentido diverso, de militar por estéticas diversas, por novas condições do humano diferentes da que vivemos. Em vários filmes o diretor aborda a política como subjacente aos fenômenos tecnológicos em pauta em seus filmes, conseguindo agregar numa unidade quase tudo que me dá tesão intelectualmente. O valor profético de Cronenberg, em franco "comeback", ainda está por ser explorado. Essa dificuldade acontece por que simplesmente nossas tecnologias ainda não fazem, mas estão em vias de realizar as mais insanas fantasias de artistas como Cronenberg. Termino com um trecho de uma ótima e curta resenha sobre Videodrome, encontrada na Internet. Publicada originalmente em 1983, quando do lançamento do filme, foi reescrita e atualizada para o lançamento do DVD:

In Videodrome, Cronenberg riskily goes one step beyond in identifying power structures that are, essentially, invisible. While exalting the awesome dynamics of the body—its sexual energy, its capacity for the extrasensory, its suggestibility—Cronenberg implies that the body is a transient state between individual existence and the creation of a "new flesh" in which the television screen is, literally, the retina of the mind’s eye. In the trancelike, if confounding, universe of Videodrome, the only way to resist eradication is to transform oneself into pure electronic energy. Understand that Videodrome was released sixteen years prior to The Matrix. (Make Mine Cronenberg, de Carrie Rickey, publicado originalmente no Village Voice, janeiro de 1983. Para ler o texto completo, clique em http://www.criterionco.com/asp/release.asp?id=248&eid=371§ion=essay&page=1)

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