Especulações livres

21 de ago. de 2008

Sobre algemas

Só rindo para não chorar do absurdo que se tornou essa discussão em torno de uso de algemas...

Mas, a meu ver, há sim um lado positivo nesse descalabro todo: pelo menos agora vemos uma explicitação, além de uma institucionalização, dos preconceitos de raça e classe que norteiam a vida social e jurídica no país. Tais preconceitos, que funcionam intactos desde o século 16, sempre foram o não-dito (o óbvio que não precisa, ou não deve, ser dito) que ordena as relações sociais profundamente desiguais no país, em detrimento de quaisquer leis escritas. Há ,no Brasil ,plena consciência desse descolamento entre teoria e prática, através de percepções de que algumas leis "não pegam", por exemplo. A meu ver, no entanto, enquanto permanecem leis costumeiras, tais preconceitos fogem de um controle institucional, impedindo qualquer consolidação maior da democracia, dado que as leis e as instituições não refletem a sociedade. concreta. Com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal relativas a algemas e concessão de habeas corpus (alguém precisaria urgentemente fazer um levantamento quantitativo do tempo médio que decorre entre a entrada de um pedido de habeas corpus e a tomada de decisão pelo STF, cruzando dados como raça e classe do requerente, por exemplo), vemos a institucionalização de desigualdades que sempre fizeram parte do nosso já teorizado "racismo cordial" (que de cordial nada tem). A obviedade da injustiça de tais decisões traz alguma esperança de que, no debate feito entre juízes de primeira instância, Polícia Federal e população, alguns costumes mudem, e sejam assim refletidos em leis mais justas. Até lá, fico com a charge mesmo, esperando sentado.

10 de ago. de 2008

À meia noite levarei a tua alma (José Mojica Marins, 1964)



Em homenagem ao lançamento do novo filme de Marins, Encarnação do Demônio, e fã que sou do seu trabalho, resolvi rever o primeiro grande sucesso do diretor. Afinal, se a trilogia sobre Zé do Caixão aparentemente se completa agora, 44 anos depois do início da série, quis reencontrar o personagem lá no inicio, quando fora pensado pelo seu criador. A primeira dificuldade se coloca: posso eu, como fã, escrever de forma “objetiva” ou “desinteressada” sobre Mojica? Claro que não, e também não estou interessado em tentar. Toda escrita não deixa de ser uma opinião, por melhor fundamentada que seja. Qualquer análise, especialmente de obras de arte, tem por trás de si interesses. Dada essa premisa, uma outra dificuldade correlata é: como separar o personagem Zé do Caixão presente nos filmes da sua imagem, superexposta pela mídia mundial? Como olhar para um filme como À Meia Noite... hoje sem ser influenciado pela infinidade de discursos, de todo tipo e viés, sobre o diretor, sua obra e especialmente sobre Zé do Caixão, que emerge do imaginário popular urbano brasileiro para tornar-se um dos ícones do terror mundial? A resposta é a mesma: não é possível. Todo discurso possui um contexto, um espaço e um tempo. Minha tentativa de escrever sobre Mojica agora, contextualizada pelo lançamento de seu novo filme, não deixa de ser também minha gota d’água na correnteza de palavras e imagens produzidas a seu respeito. Deixo aqui minha pequena contribuição, que é ao mesmo tempo expressão da minha admiração pelo diretor, que considero dos maiores do panteão de cineastas nacionais.

Ao rever o filme, fica clara a diferença entre Zé do Caixão aqui e em outros filmes do diretor. Zé do Caixão tem nesse filme uma concretude que difere da condição de símbolo e ícone que ganhou após o seu sucesso estrondoso que fez. Mojica, que faz meta-análises próprias sobre Zé em diversos filmes seus (de forma mais brilhante em Ritual dos Sádicos, de 1970), aqui apresenta uma história simples, sobre um homem complexo que enfrenta dilemas existenciais e questiona desde as tradições da vila em que mora, até a sua religião. Pelo menos na versão que assisti, o filme possui estrutura linear bastante definida, bastando-se a si mesmo: não deixa aberturas para seqüências e apresenta a vida e morte, começo e fim desse personagem.

Assim como em tantos outros filmes seus, os conflitos apresentados são ao mesmo tempo de natureza puramente existencial (a recusa em seguir tradições, o prazer e a proibição do sadismo, a busca de procriar e dar continuidade ao sangue) e profundamente filosóficos (recusa da religião como meta-explicação para a natureza, a elevação da vida guiada pelo prazer dos sentidos como justificativa máxima para existência, a recusa da moralidade em favor da continuidade do sangue dos mais fortes). Tais sutilezas, completamente apagadas de grande parte das análises que leio de Mojica, são tambem perdidas ao longo de tantos outros filmes do diretor. Em outras palavras, enquanto que nesse primeiro filme Zé aparece como complexo ser humano, que ao mesmo tempo mata sua esposa (justificada, por ser infértil) e admoesta um pai por bater em seu filho (pois as crianças são a continuidade do sangue), em outros filmes Zé do Caixão vira imagem. Ou seja, os argumentos tomam como ponto de partida o imaginário popular que desenvolveu-se em torno do personagem, por vezes analisando sociologicamente o fenômeno, por outras lamentando o apagamento do diretor Mojica e da confusão criada entre criador e criatura (confusão que Mojica faz questão de incentivar em aparições públicas).

Numa entrevista, parte dos extras desse DVD a que tive acesso, Mojica esclarece pequenos detalhes sobre Zé do Caixão, reveladores da sua concretude enquanto ser humano. Para além da famosa história a respeito de como Mojica sonhou com a data de sua morte, quando foi então “revelado” o personagem (ou assombrado por ele), Mojica menciona que Zé do Caixão foi um soldado que, tendo retornado da II Guerra na Europa, não consegue adaptar-se à comunidade local. No filme vemos um pouco da vida social de Zé: vai à pescaria com amigos, tem um casamento relativamente feliz e freqüenta o bar local como qualquer pessoa. Ainda que sua aparência destoe da do resto da comunidade (a famosa capa preta e cartola), Zé é parte da comunidade, um ser humano e não uma aparição etérea.

Seus problemas começam quando Zé, cansado de esperar que sua esposa engravide, decide matá-la. O assassinato marca a “queda” do ser humano Zé, em direção ao lado escuro da sua personalidade. A meu ver, o filme como um todo pode ser visto, entre outros registros, como o de uma queda de Zé rumo ao extremo de suas ideologias (um dos temas favoritos de Mojica nos anos 1960), caminho que o leva também em direção ao sobrenatural. O sobrenatural serve no filme tanto como marcador do macabro, quanto para dar sentido ao discurso social e filosófico de Zé. Ou seja, como figura socialmente aberrante, anti-religioso e nietzscheanamente a favor da “vida e do sangue”, Zé aparece para sua comunidade como “monstro”.

Mojica faz assim um paralelo entre a superstição do povo no filme com a imagética que dá sentido ao próprio filme (abusando de estereótipos como gatos pretos, ciganas e despachos de umbanda). O filme possui então ao menos duas camadas de sentido relevantes para entender o efeito de terror que é buscado. A primeira, no interior da história, Zé do Caixão como desviante é percebido como marginal na sua comunidade, tornando-se assassino na sua busca de realizar a continuidade do sangue. A segunda refere-se às opções estéticas do diretor: Mojica, consciente como sempre do seu público, apresenta um dilema de representação: como tornar visível a recusa da moral?

No caso brasileiro (ou a partir da compreensão de Mojica do brasileiro da sua época), tal recusa faz sentido visualmente em termos de uma afronta às tradições religiosas (a célebre cena de Zé comendo carne com a procissão ao fundo), e do sobrenatural (ciganas, cemitérios, almas penadas): um anti-cristão só pode, nesse esquema de sentido, ser aliado do “demônio” ou de “forças ocultas”. Zé do Caixão, ao recusar a moral (o bem e o mal tal qual definidos pela sua comunidade) em favor do que ele chama de “superioridade da vida” (representada pelo direito do mais forte de impor sua vontade e de reproduzir seu sangue), é percebido então como encarnação do mal; ou seja, é lido nos termos da moral que ele próprio busca recusar. Em outras palavras, Mojica enfrenta o dilema por ele proposto ao abraçar em certa medida alguns clichés visuais e míticos os quais ele comenta irônicamente ao mesmo tempo em que os usa em seu favor, para chocar o público.

Zé não deixa de ser algo confuso, um meio termo entre o real e uma aparição. Para além do filme, Mojica também busca o tempo todo confundir os limites entre o real e a ficção a partir de suas falas sobre o filme. A construção visual do personagem é um exemplo: o excesso nas roupas (que Mojica revela em entrevista serem peças tiradas de uma fantasia de Exú) é associado a uma decoração pouco tradicional mostrada no filme, por exemplo, a partir de mãos de manequins servindo de ganchos; uma especie de “pré-psicodelia mojicana” que antecipa a visualidade de filmes como Laranja Mecânica. Nascido como um coveiro com opiniões bastante heterodoxas sobre as pessoas que o cercam, achando-as ignorantes e supersticiosos, no decorrer do filme Zé atravessa uma fronteira, rumando em direção ao “monstro” que tanto define sua imagem posterior.

PS: Publico esse texto sem ter visto o novo filme, que estreiou ontem, 08/08/08. Tentarei postar comentários sobre o novo trabalho assim que conseguir assistí-lo.

5 de ago. de 2008

Charge sobre Daniel Dantas

Ainda sem palavras para comentar esse caso, que vai entrar para história (um dia, quando essa história puder ser contada, quem sabe daqui a 100 anos), achei essa charge bem interessante, como documento simplificado dos fatos. Num momento perverso da nossa política, mas que ao mesmo tempo permite que vejamos as entranhas do câncer que corrói a nossa sociedade há tanto tempo, o que há de claro é um momento de desencaixe entre a realidade e as linguagem que possuímos para descrevê-la. Pelo menos no consciente coletivo (leia-se: mídia, conversas de botequim, etc.; pois em várias instâncias já se fala a verdade em novas linguagens a muito tempo, com em alguns blogs e revistas). Será que ocorrerá de a sociedade brasileira, a partir de uma reavaliação dos fatos, começar a exigir novas leis, novas práticas públicas, novas atitudes de seus governantes? Permaneço otimista. Mas devidamente sentado.

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