Especulações livres

4 de ago. de 2007

Algo de podre em Pindorama

Parece que o Youtube torna-se, cada vez mais, num mecanismo de perturbacao da ordem vigente, numa especie de praca publica barulhenta e caotica, onde as aliancas, mediacoes e censuras da antiga praca publica, a midia televisiva e jornalistica, nao se aplicam. Ou seja, o equilibrio que se ve nas outras midias, que no Brasil baseia-se numa ilusao de liberdade de imprensa que esconde um elitismo e governismo endemicos, nao conseguiu ainda implantar-se na internet de forma duradoura. Por essas e outras, ao redor do mundo, o Youtube causa comocao ao tornar publico e visivel aquilo que deveria, pelo bem do teatro social, permanecer invisivel.





Ironico que, ao mesmo tempo em que nasce a campanha do Cansei (que conheco apenas pela midia eletronica, ja que nao estou no Brasil), vemos essa mesma "elite" jogar um ovo podre pra cima, o qual inevitavelmente acertou-lhe a fuca: em questao, o video "ovos em Copacabana". O interessante desse video e a inocencia e "naivete" dos personagens envolvidos. A composicao do video remete ao que ha de mais canonico nesse tipo de video: uma festa bastante informal, pessoas descontraidas mostrando seu lado mais intimo, uma camera com visao noturna indicando uma intimidade relacionada a um certo "proibido" (pelo menos desde a multiplicacao dos videos de sexo pela internet), uma falta de censura que poderia ser relacionada ao proprio meio. Como disse acima, o Youtube, e a internet em geral, ainda nao adquiriu maturidade e legitimidade social como outros meios de comunicacao, e muito do que vemos no site tem a ver com o olhar furtivo e voyeuristico de cameras minusculas que mostram aquilo que as pessoas fazem "no escuro", "por debaixo do pano", longe das censuras sociais e das convencoes.
Por isso mesmo, ao me deparar com os protagonistas do video, dois jovens loiros e aparentemente abastados, jogando ovos pela janela, tentando acertar carros, transeuntes e ate a policia, temos ai uma expressao bastante clara daquilo que no Brasil e o nosso ethos imperial/hierarquico recalcado: A elite tudo pode: por ser elite, esta acima do bem e do mal; apesar de todo o decoro que demonstra nos rituais publicos, perde-o rapidamente em seus rituais privados. A mesma elite "cansada" de corrupcao e falta de etica exibe tranquilamente, dentro de seus apartamentos e festas exclusivas, toda a falta de etica que critica em publico. Esta cansada de traficante mandando no morro, mas nao hesita em demonstrar o dominio sobre o seu proprio feudo, Copacabana e adjacencias. Esta cansada de corrupcao, mas joga ovos na policia, demonstrando ao mesmo tempo o desrespeito pela lei e ordem e o total desprezo pelas instituicoes que a protegem. Esta cansada da falta etica, mas e incapaz de esconder o preconceito com as simbolicas "vagabundas" (Geni!) e outros grupos sociais desfavorecidos, que por serem despreziveis podem e devem ser alvos de brincadeiras esdruxulas e humilhantes. Protegida pela condicao de ser elite, certa parcela dessa populacao se sente no direito de ter tudo e de nao dever nada a ninguem. Depois nao entende o porque de deputados, exibindo a mesma falta de etica e decoro, sao incapazes de fingir que trabalham, nem diante de cameras de televisao. O video dos ovos no Rio me faz lembrar Marie Antoinette, brincando de ser camponesa em meio a pobreza e desespero. Incapaz de perceber seu momento historico, legou aos anais da historia a sua frase "que comam brioches". Na sua inocencia, tornou publico o lugar nefasto que a elite francesa da epoca ocupava. Nos dias de hoje, tais frases rapidamente espalham-se pela internet, a meu ver com o mesmo efeito. Mas no caso do Brasil, nao sei se chegaremos algum dia a fazer algo a respeito, alem de execrar essa parte podre da elite em textos de blogs e jornais.






A crescente perplexidade da populacao com essa falta de decoro, que elege o Parlamento (sic) como instituicao-simbolo do desprezo pelos reais problemas da sociedade, do elitismo e da malandragem, de novo demonstra a dificuldade da cultura brasileira de digerir a democracia. Nostalgicos do Imperio e do governo militar, muita gente ainda associa a ideia de democracia a baderna, e a figura do deputado com incompetencia. E parece que a nossa "elite" (sic) faz de tudo para provar essas pessoas que elas estao corretas. Minha decepcao com a esquerda e a de que, cumprindo uma certa necessidade historica, provaram ser capazes de mobilizar a populacao em torno de um candidato que seria, a principio, um "outsider" nessa ordem. Lula, mais do que um candidato "do povo" ou "proletario", seria o simbolo-indicio de que a democracia poderia criar raizes, de que a alternancia do poder poderia funcionar ordenadamente, e de que outras elites poderiam levar a cabo mudancas, contra o proprio sistema, a favor da populacao. A crescente adaptacao da esquerda no poder ao esquema vigente demonstra a incapacidade dessa esquerda de perceber essa janela historica. Indica a eterna solucao brasileira para evitar a mitologica revolucao: o sistema sobrevive apesar de tudo, dentro ou fora da democracia, e as desigualdades sao protegidas acima de qualquer outro principio. A permanencia da desigualdade no Brasil e um caso tao importante quanto pouco estudado e compreendido na historia social e politica do planeta.

Ao deixar-se levar pelas maracutaias do sistema, ao adaptar-se em demasia, a esquerda atual comprova os velhos preconceitos de que pobre, quando come mel, se lambuza. Deriva-se dai a ideia de que o "povo" (outro mito permanente) deveria mesmo permanecer no seu lugar, ao inves de tentar governar a si proprio. Lembro-se daquele grande "heroi" (SIC) da etica na politica, o Sr. Roberto Jefferson, chamando os petistas de "ratos magros". Poucas vezes o circo de horrores que e a elite politico-economica do pais ficou mais evidente do que durante os primeiros momentos do escandalo do Mensalao. Que nada aconteceu a ninguem, a nao ser uma cassassao simbolica de alguns personagens chaves, demonstra a infinita capacidade do sistema politico brasileiro em reproduzir-se e manter a sua coerencia, mesmo na pior das adversidades. Demonstra tambem a "cordialidade" da populacao, que nao tomou as ruas.

Sinto de longe uma certa radicalizacao da politica no Brasil, especialmente desde o desastre da TAM. Pessoas com um minimo de interesse na historia do pais comecam a sentir um certo cheiro de "golpismo", expresso em campanhas como a do "cansei". Ainda que seja diferente da Marcha pela Familia, Tradicao e Propriedade, a ideia da elite cansada da "baderna" e que resolve tomar o poder para "arrumar a casa" e recorrente na nossa historia politica. O que me irrita e a incapacidade da esquerda de pensar sobre isso e buscar meios de se projetar para a populacao como diferentes da elite tradicional. Nao sei se isso se deve aos nossos preconceitos inatos contra a esquerda, ou se e incompetencia do governo mesmo. Mas a partidarizacao do debate sobre o desastre da TAM, para mim, demonstra um pessimo sinal. Explicita que a briga desesperada pelo poder sobrepoe-se a criterios minimos de boa governanca, etica, decoro e competencia. Se a atmosfera e de vale-tudo, nao penso que sairemos dessa por um caminho positivo. Fica aqui a minha indignacao e, para ser direto, medo mesmo.

7 comentários:

Anônimo disse...

Bom texto, acho que é isso mesmo, a única esperança é que esa situação seja apenas um sintoma, uma última "esperneada" da elite depois da sova eleitoral dos últimos anos e que depois que fizerem um outro presidente percebam o significado da alternância no poder.

Rodrigo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rodrigo disse...

atualmente, fazer parte da "elite" é algo estigmatizante como os leprosos de antigamente. vc é apontado na rua, ou melhor, na blogosfera como insensível, privilegiado (e daí pra pior) por pessoas que são tão "elite" quanto você (afinal ambos têm acesso à internet), mas que se julgam acima do bem ou do mal simplesmente por serem partidário daquele tal partido que se julgava acima do bem e do mal. é claro q vc nao se lembra daquele texto q eu te mandei faz tempo sobre a definição de elite da Marina Silva, né?

Marko disse...

Nao entendi se seu comentario foi sarcastico ou ou nao Rodrigo... Concordo que nao faz sentido criticar alguem por fazer parte da "elite". Uso os termos "elite" e "povo" entre aspas, por serem os termos que circulam na midia e nos discursos que analiso. Nao faco uso deles sem aspas por que sao gerais e imprecisos demais. Sao simplificacoes que circulam por ai, e isso em si ja e fato interessante de se pensar (e foi o que eu tnetei fazer no texto acima). Pois e a partir dessas simplificacoes que muitas brigas politicas estao ocorrendo; e especialmente partidos politicos adoram usar essas simplificacoes. meu argumento era mais a respeito de decoro do que qualquer outra coisa.

Didi disse...

De fato essa coisa do "Cansei" tem um cheiro de TFP com as famigeradas marchas pré-golpe de 64, sim. Não sou lulista, petista ou qualquer coisa que o valha, mas devo concordar com a sua análise que está perfeita, a despeito de quantas aspas devem ter a palavra elite. Parafraseando aquela clássica frase, em um país onde uma parte faz dieta e um contingente enorme de pessoas passam fome (fora outras violências)de fato é revoltante e não vejo estigma nenhum nisso, já que o poder é assimétrico. Ainda que eu faça parte daquele minoria de brasileiros com acesso à educação, internet e afins.

Didi disse...

Ah sim, enchendo o saco ainda: vi agora o video, pois a sua versão, Marko, foi devidamente "removida". E creio que o comentário seu e do Rodrigo podem ser unidos de certa forma. Esse texto http://blogdamartabellini.blogspot.com/2007/08/uma-opinio-respeito-dos-ovos-da-elite.html
traz uma idéia do que penso a respeito.

Anônimo disse...

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