Especulações livres

10 de out. de 2005

Sobre armas e representação






Fui ver o último filme de Andrew Niccol, O Rei das Armas, em pré-estréia aqui em São Paulo. Enquanto assistia, minha mente fervilhava de questões o tempo todo, algumas das quais queria colocar aqui. Logo de cara fiquei pensando na ironia da História, de nos dar a chance de assistir a um filme sobre o tráfico de armas internacional, ao mesmo tempo em que somos bombardeados pela recente propaganda sobre o plebiscito. E já que falei disso, realmente não sei em qual lado vou votar, pois o jogo de insinuações e de pressões é pobre e maniqueísta de ambos os lados. Afinal, propaganda é propaganda, e sobre isso eu queria pensar aqui um pouco. O que diferencia um filme político de propaganda, no sentido de um discurso simplificado e que visa influenciar opiniões? Será que existe tal diferença, e será que ela é relevante (pelo menos em termos metodológicos)? Acho interessante pensar isso tendo em vista os posts passados, sobre filmes como Yo Soy Cuba, de Kalatozov (e também Viva México, de Eisenstein, ou até Triunfo da Vontade, de Riefenstahl)*. O filme de Niccol apela em alguns momentos para esquemas de filmes de propaganda política, daquela do tipo Duda-Mendonciana, ou pelo menos tive essa impressão. Nada que retire do filme seus méritos, que fique claro.

Dei-me conta que Niccol, em outros filmes, buscava temas que existiam na interseção interessantíssima da ficção científica com a política. Filmes como Simone (que discute as implicações do fim da diferença entre real e virtual), O Show de Truman (que fala de um experimento totalitário-capitalista, fruto de uma necessidade do mercado, um reality show megalomaníaco que se confunde com a nossa própria realidade midiática) e Gattaca (que ainda permanece um dos poucos discursos influentes sobre os dilemas que enfrentamos e enfrentaremos com a disseminação das técnicas de engenharia genética). Em O Senhor das Armas ele faz uma espécie de libelo contra o tráfico internacional de armas, mesclando imagens bastante interessantes (como a seqüência que acompanha os créditos iniciais do filme, mostrando o interior de uma fábrica de munições) com teorias sobre como os fluxos de armas corrompem governos e instituições.

Uma dessas imagens é particularmente irônica: Nicolas Cage, o traficante de armas, encosta-se numa estátua de Lênin caída no chão; em segundo plano, uma seqüência de tanques de guerra alinhados até o infinito. Aliás, há sempre essa questão da ideologia presente no filme. Se na Guerra Fria havia uma motivação ideológica para a corrida armamentista, depois de 1989 há somente o caos mercantilista. O filme baseia-se muito, no que diz respeito à imagem que passa dos traficantes de armas, num senso comum disseminado pela própria mídia, mas eu não saberia dizer em que medida aquelas questões factuais sobre o funcionamento do tráfico de armas são críveis ou não. Há a opinião de Niccol, claro, de que acima das ideologias há o capitalismo, corroendo qualquer outra base de valores que não seja a da acumulação. Há uma certa ironia política a respeito dos EUA também, numa cena “glauberiana” onde o ditador da Libéria diz ao traficante: “Bem-vindos à democracia”. O traficante fica espantado com a associação impossível entre o sistema político da Libéria e a democracia. Mas o ditador explica: depois do episódio da primeira eleição de Bush Jr., qualquer país como o dele poderia se dizer “democrático”.




Pensando armas e representação, pensei logo no filme de Bruce la Bruce, Raspberry Reich, que faz uma paródia pornográfica de filmes políticos da nouvelle vague e documentários soviéticos dos anos 1960. Penso em cenas como as primeiras, na qual a atriz, interpretando a líder de um grupo guerrilheiro, faz sexo explícito num cenário repleto de referências aos anos 1960. Entre outras coisas, vemos brincadeiras ótimas com esse imaginário revolucionário, como os atores praticando felação em revólveres. Apesar de fundamental, esse repensar das ideologias é pouco levado a sério. Mas me leva a especular, deleuzianamente, se um revólver nas mãos de um revolucionário cubano dos anos 1960 é a mesma coisa que o revólver que mata alguém durante um assalto; ou se a metralhadora folheada a ouro do filho do ditador da Libéria é a mesma coisa que a metralhadora folheada a ouro do traficante do morro carioca. Quais os agenciamentos maquínicos mobilizados em cada caso? Seria isso relevante ou não? Ajudaria isso a repensar esses filmes ou não? Os filmes nos ajudam a representar as armas, nos seus agenciamentos ideológicos ou não? Ok, tá parecendo discurso de estudante de filosofia da USP em 1968, termino o post por aqui!



*Ainda não cheguei a nenhuma conclusão sobre o que quero pensar a respeito do cinema político, mas como estou fazendo isso como hobby no blog, não pretendo chegar a nenhuma conclusão muito rapidamente.

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