
A enxurrada de discursos sobre o filme
Brokeback Mountain é uma ótima desculpa para levantar um tema que me interessa bastante: a representação da homossexualidade no cinema, que é talvez o discurso audio-visual mais importante da atualidade, tanto pela abrangência quanto pela legitimidade cultural, institucional e até filosófica que adquiriu desde o início do século XX. Ou seja, o cinema interessa como manifestação cultural, expressão de valores, e como criador de valores, reinterpretando e deslocando sentidos centrais para uma cultura "midiática" como a contemporânea. No caso da homossexualidade, nunca é demais lembrar o documentário,
Celulloid Closet, texto básico para a compreensão mínima dessa questão. Algumas questões fundamentais para uma compreensão crítica e rica do filme no seu papel atual está num texto disponível no site Mix Brasil (clique
aqui para ler), que faz uma leitura psicanalítica dos personagens do filme. Incrivelmente, a resenha consegue trazer, ao mesmo tempo, insights sociológicos importantes sobre a questão da possibilidade de vivenciar de forma satisfatória a sexualidade "gay" nos dias atuais (ainda que o filme trate dos anos 1960-1970).
Há, pode-se argumentar, uma estrutura recorrente nos discursos culturais sobre a homossexualidade, que retrata um pouco o preconceito e as dificuldades enfrentadas pelos sujeitos que possuem esse desejo: a maioria dos filmes retrata o amor e a sexualidade homossexual como uma impossibilidade simbólica, como uma tragédia anunciada. O gay/homossexual somente consegue viver sua sexualidade como desvio, nos submundos da sociedade mais ampla, escondido da maioria, e é geralmente punido com a morte (ou com a morte do seu objeto de afeto) pelo seu desvio, nas narrativas mais comuns e "canônicas". A morte significa o fim necessariamente trágico de um ser que não se encaixa na normalidade, e representa a resolução mais harmônica para restaurar a heteronormatividade temporariamente abalada: elimina-se o sujeito desviante, que paga com a morte a ousadia de querer viver um desejo "anômalo". Filmes como
Filadélfia, penso
, se encaixam nessa estrutura, entre tantos outros na história do cinema.
Eu esperava ver exatamente isto em
Brokeback, mas fui surpreendido por uma história delicada e complexa que foca o tempo todo a vivência do amor entre os dois personagens. Ainda que repleto de dificuldades e tolhidos pelas expectativas sociais que precisam preencher (e que a todo tempo inviabilizam tanto a prática quanto o próprio ato de imaginar um futuro em comum), os dois homens fazem de tudo para poderem vivenciar o seu amor. E ainda que a narrativa não consiga escapar do mandamento clássico que exige uma morte/tragédia final, essa morte acontece de forma menos dramática (aparentemente foi um acidente de trabalho), e não consegue apagar do filme a noção de que houve uma grande história de amor efetivamente vivida pelos dois personagens.
Estamos muito longe do momento em que a homossexualidade será aceita como uma possibilidade discursiva positiva, no sentido de algo socialmente desejável. Existe uma brutal diferença entre tolerar guetos homossexuais marginais e pouco visíveis e celebrar quando, por exemplo, descobre-se que um filho tem tendências homossexuais. Se não celebrar, pelo menos ter aquilo como corriqueiro. Quando esse dia chegar, aí sim poderemos falar em aceitação. E como lembra a resenha do Mix, muito da culpa dessa inviabilização pode ser avaliada como sendo dos próprios sujeitos homossexuais que, internalizando a impossibilidade social da sua existência simbólica, apagam-se de fato e, quando não tentam reprimir totalmente, vivenciam seu desejo de forma furtiva e marginal, que é tratado como desvio a ser constantemente combatido e punido (como no caso de Ennis Del Mar, em alguns momentos). Esse tipo de personagem, especialmente em culturas machistas como a brasileira, faz parte do cotidiano e exprime esse drama de forma incorporada, na sua própria vivência "enrustida".
Não deixa de ser complicado culpar, ainda que parcialmente, os próprios sujeitos homossexuais pela sua sujeição e impossibilidade de vivenciar seus desejos. Politicamente, desmotiva movimentos que buscam direitos de homossexuais e possibilita uma legitimação do preconceito como parte da própria experiência homossexual ("Não é a sociedade que reprime, são eles que não se aceitam como gays!"). Como esse texto não é político, pelo menos não num sentido direto de filiação a algum movimento, permito-me brincar com essas idéias. Especialmente no momento em que vivemos, pós-Stonewall, e no país das paradas gays carnavalescas. Se há brechas para que se vivencie o desejo, por que há tantos e tantos sujeitos que se limitam, se podam, e se policiam simbolicamente contra isso? Não podem parecer gays, não podem experimentar essa condição como algo normal e corriqueiro, somente se permitem vivenciar isso como algo marginal e desviante (por exemplo, associado a vida noturna, hedonismo, sexo livre, uso de drogas, etc.). Nesse sentido, a associação, ainda que tortuosa e problemática, entre homossexualidade e amor/relacionamentos de longo prazo é algo, infelizmente, inusitado nos discursos mais hegemônicos.
Há filmes muito mais interessantes para se repensar a homossexualidade (de cara penso em Má Educação, de Almodóvar, e nos filmes de Bruce LaBruce), mas podemos debater Brokeback como parte de um discurso dominante, que parece permitir deslocamentos importantes de estereótipos poderosos que estruturam a vivência da homosexualidade. Mais do que analisar e interpretar filmes ou quaisquer outros discursos culturais, há uma urgência em se criar e vivenciar de fato novos valores e novos símbolos. Esses deslocamentos devem ocorrer na prática cotidiana (e não somente da parte dos homossexuais), para que não se repita eternamente a impossibilidade do amor, a trágica impossibilidade simbólica do homossexual, como fracasso pré-anunciado.