Especulações livres

11 de fev. de 2006

Homossexualidade e representação



A enxurrada de discursos sobre o filme Brokeback Mountain é uma ótima desculpa para levantar um tema que me interessa bastante: a representação da homossexualidade no cinema, que é talvez o discurso audio-visual mais importante da atualidade, tanto pela abrangência quanto pela legitimidade cultural, institucional e até filosófica que adquiriu desde o início do século XX. Ou seja, o cinema interessa como manifestação cultural, expressão de valores, e como criador de valores, reinterpretando e deslocando sentidos centrais para uma cultura "midiática" como a contemporânea. No caso da homossexualidade, nunca é demais lembrar o documentário, Celulloid Closet, texto básico para a compreensão mínima dessa questão. Algumas questões fundamentais para uma compreensão crítica e rica do filme no seu papel atual está num texto disponível no site Mix Brasil (clique aqui para ler), que faz uma leitura psicanalítica dos personagens do filme. Incrivelmente, a resenha consegue trazer, ao mesmo tempo, insights sociológicos importantes sobre a questão da possibilidade de vivenciar de forma satisfatória a sexualidade "gay" nos dias atuais (ainda que o filme trate dos anos 1960-1970).
Há, pode-se argumentar, uma estrutura recorrente nos discursos culturais sobre a homossexualidade, que retrata um pouco o preconceito e as dificuldades enfrentadas pelos sujeitos que possuem esse desejo: a maioria dos filmes retrata o amor e a sexualidade homossexual como uma impossibilidade simbólica, como uma tragédia anunciada. O gay/homossexual somente consegue viver sua sexualidade como desvio, nos submundos da sociedade mais ampla, escondido da maioria, e é geralmente punido com a morte (ou com a morte do seu objeto de afeto) pelo seu desvio, nas narrativas mais comuns e "canônicas". A morte significa o fim necessariamente trágico de um ser que não se encaixa na normalidade, e representa a resolução mais harmônica para restaurar a heteronormatividade temporariamente abalada: elimina-se o sujeito desviante, que paga com a morte a ousadia de querer viver um desejo "anômalo". Filmes como Filadélfia, penso, se encaixam nessa estrutura, entre tantos outros na história do cinema.
Eu esperava ver exatamente isto em Brokeback, mas fui surpreendido por uma história delicada e complexa que foca o tempo todo a vivência do amor entre os dois personagens. Ainda que repleto de dificuldades e tolhidos pelas expectativas sociais que precisam preencher (e que a todo tempo inviabilizam tanto a prática quanto o próprio ato de imaginar um futuro em comum), os dois homens fazem de tudo para poderem vivenciar o seu amor. E ainda que a narrativa não consiga escapar do mandamento clássico que exige uma morte/tragédia final, essa morte acontece de forma menos dramática (aparentemente foi um acidente de trabalho), e não consegue apagar do filme a noção de que houve uma grande história de amor efetivamente vivida pelos dois personagens.
Estamos muito longe do momento em que a homossexualidade será aceita como uma possibilidade discursiva positiva, no sentido de algo socialmente desejável. Existe uma brutal diferença entre tolerar guetos homossexuais marginais e pouco visíveis e celebrar quando, por exemplo, descobre-se que um filho tem tendências homossexuais. Se não celebrar, pelo menos ter aquilo como corriqueiro. Quando esse dia chegar, aí sim poderemos falar em aceitação. E como lembra a resenha do Mix, muito da culpa dessa inviabilização pode ser avaliada como sendo dos próprios sujeitos homossexuais que, internalizando a impossibilidade social da sua existência simbólica, apagam-se de fato e, quando não tentam reprimir totalmente, vivenciam seu desejo de forma furtiva e marginal, que é tratado como desvio a ser constantemente combatido e punido (como no caso de Ennis Del Mar, em alguns momentos). Esse tipo de personagem, especialmente em culturas machistas como a brasileira, faz parte do cotidiano e exprime esse drama de forma incorporada, na sua própria vivência "enrustida".
Não deixa de ser complicado culpar, ainda que parcialmente, os próprios sujeitos homossexuais pela sua sujeição e impossibilidade de vivenciar seus desejos. Politicamente, desmotiva movimentos que buscam direitos de homossexuais e possibilita uma legitimação do preconceito como parte da própria experiência homossexual ("Não é a sociedade que reprime, são eles que não se aceitam como gays!"). Como esse texto não é político, pelo menos não num sentido direto de filiação a algum movimento, permito-me brincar com essas idéias. Especialmente no momento em que vivemos, pós-Stonewall, e no país das paradas gays carnavalescas. Se há brechas para que se vivencie o desejo, por que há tantos e tantos sujeitos que se limitam, se podam, e se policiam simbolicamente contra isso? Não podem parecer gays, não podem experimentar essa condição como algo normal e corriqueiro, somente se permitem vivenciar isso como algo marginal e desviante (por exemplo, associado a vida noturna, hedonismo, sexo livre, uso de drogas, etc.). Nesse sentido, a associação, ainda que tortuosa e problemática, entre homossexualidade e amor/relacionamentos de longo prazo é algo, infelizmente, inusitado nos discursos mais hegemônicos.
Há filmes muito mais interessantes para se repensar a homossexualidade (de cara penso em Má Educação, de Almodóvar, e nos filmes de Bruce LaBruce), mas podemos debater Brokeback como parte de um discurso dominante, que parece permitir deslocamentos importantes de estereótipos poderosos que estruturam a vivência da homosexualidade. Mais do que analisar e interpretar filmes ou quaisquer outros discursos culturais, há uma urgência em se criar e vivenciar de fato novos valores e novos símbolos. Esses deslocamentos devem ocorrer na prática cotidiana (e não somente da parte dos homossexuais), para que não se repita eternamente a impossibilidade do amor, a trágica impossibilidade simbólica do homossexual, como fracasso pré-anunciado.

11 comentários:

Anônimo disse...

Fundamental sua reflexão ... É pelo menos o que vi - não, simplesmente, um filme sobre homossexualismo, mas sobre uma relação entre-pessoas, de carne-e-osso, que é um filmaço justamente porque espacapa do filme polêmico, apelativo ou apologista. Ang Lee, a meu ver, quis apenas fazer um filme sobre uma história como outra qualquer.

Anônimo disse...

Texto primoroso e, até agora, o melhor sobre esse filme maravilhoso. Assisti semana passada e me bateu um imensa insônia. Meu texto está muito mais pessoal, talvez por tê-lo visto em um período um pouco frágil da vida. Seu texto merece ser guardado, adorei! abração.

Anônimo disse...

Um texto de grande força Marko, parabéns. O resgate do Documentário Celulloid Closet foi ótimo, me lembro de quando o vi no cinema e do impacto que foi para mim os relatos e as informações contidas nele...

Marko disse...

Marcos, pensei um pouco sobre seu comentário, e preciso dizer que está aí a questão inusitada do filme: tratar de uma história de amor, de forma delicada e "universal", mas substituindo o casal heterossexual canônico por um casal homossexual. Esse deslocamento infelizmente expõe exatamente isso que eu queria dizer no texto: há uma enorme dificuldade em se pensar a existência do amor verdadeiro no mundo gay, e há a dificuldade em se pensar a forma de viver desses sujeitos como normal e corriqueira. Há uma enorme FACILIDADE em se pensar nesse sujeito como anomalia fadada à tragédia, penso eu. E isso perpassa todo mundo: gay, hétero, bi, pansexual. Ou seja, é um problema de todo mundo, da sociedade, da cultura mesmo. Eu digo isso e reitero sempre, por que, obviamente, existe o desejo "político" e pessoal da minha parte em deslocar essa simbologia... Mas é muito mais complicado do que parece.

Rodrigo disse...

como já disseram lá no meu blog (e eu concordo), eu quero um "Notting Hill" gay já! Interessante a análise do Mixbrasil. Eu escrevi quase a mesma coisa sobre o Jack, mas nunca tinha pensado naquele ponto de vista (se bem que eu já estava quase chegando à mesma conclusão recentemente). E exatamente quais filmes de Bruce LaBruce vc está pensando? Eu só conheço Raspberry Reich e os hardcores.

Anônimo disse...

Não vi o filme, mas acho interessante a sua crítica e o gênero construído do homesexual no cinema, na tv em geral.
Lembrei-me do filme Fale com ela, do Almodovar, que ele colocova o enfermeiro, sensível e criado só pela mãe, apaixonado por um mulher.
Há uma divesidade de personalidades, não pode dizer que homo é isso já etero é aquilo.

http://dudu.oliva.blog.uol.com.br

Marko disse...

Rodrigo: especialmente os hardcores! Me lembrei de um filme lindo também, Delicada Atração, totalmente ignorado pela massa dos espectadores, que vale a pena ser visto nessa direção que falei aqui.

Anônimo disse...

Achei o filme bonito, sensível, mas não achei contundente, tampouco vanguardista. Porém, acho que a história é um reflexo (uma reflexão?) do "inconsciente gay" coletivo, e também das experiências da maioria dos homossexuais, destituídos em suas vidas de uma poderosa sensação: adequação. {tommie}

Anônimo disse...

Achei o filme bonito, sensível, mas não achei contundente, tampouco vanguardista. Porém, acho que a história é um reflexo (uma reflexão?) do "inconsciente gay" coletivo, e também das experiências da maioria dos homossexuais, destituídos em suas vidas de uma poderosa sensação: adequação. {tommie}

Marko disse...

Tommie, como de costume concordo com você: não é nenhuma obra prima, e acho que já tem coisa de vanguarda muito mais importante do que isso. Acho legal é um filme que alcançou o chamado "mainstream" mundial conseguir falar de amor (amor mesmo, que aconteceu, de forma 'sensível') entre os dois homens. É pouco, mas pra quem não tem muita coisa...

Anônimo disse...

Eu conheço pouco dos filmes abordando o homossexualismo, a não ser os óbvios (A Lei do Desejo, Minha Adorável Lavanderia, um do István Szabo sobre amor lésbico), mas a minha sensação, é de q. sp. o sexo vem na frente do amor qdo se aborda a questão, e está ai a vanguarda do filme de Ang Lee, é nesse diferencial, em abordar o amor entre dois homens, entre tirar as afetações e envolver o público de tal forma, q. na cena do cuspe, ninguém consiga achar graça.

Agora, no meu entender, o final trágico é aquele imaginado por Ennis, acho q. a combinação do q. ele supõe ter ocorrido a Jack, e a forma como a mulher do outro conta o ocorrido, q. parece uma 'desculpa', me convence do final trágico, q. infelizmente traz um esterótipo muito verdadeiro na relação com os michês: o risco da violência não consentida!

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