Especulações livres

2 de out. de 2005

I tre volti della paura (Mario Bava, 1963)




Depois de tanto tempo, precisava vir aqui e tirar o atraso. A minha vida ultimamente anda agitada demais, e não ando tendo tanto tempo para reflexões maiores quanto antes, por isso não ando publicando nada. Mas acabei de ver um filme que queria deixar comentado, nem que seja para tirar a poeira do blog. Eu já havia gostado muito de Cães Raivosos, do Bava, quando o vi na Sessão Comodoro, e até escrevi um micro-conto por causa do filme. Dessa vez tive a chance de ver um filme delicioso, I tre volti della paura (ou Black Sabbath), baseado em três contos clássicos de terror. Além de ser um filme de Mario Bava, e de ser baseado em contos do tipo que eu mais adoro, o filme tem como argumento tratar de como o amor pode ter um componente aterrorizante. Ou, dito de outra forma, e já interpretando mais: como, por vezes, destruímos aquelas coisas que mais amamos.

Essa questão aparece de forma brilhante na primeira história, O Telefone, que me deixou nervoso do começo ao fim. Uma moça atende telefonemas macabros de um suposto ex-amante, que lhe ameaça matar, deixando claro que ele está observando cada passo da moça. Esta, assustada, liga para uma "amiga", após ler a notícia de que um ex-amante seu havia fugido da prisão. Ficamos sabendo que essa amizade havia sido interrompida pela moça, por alguma razão, e também logo vemos que há ali um triângulo amoroso bizarro: a moça assustada, a amiga rechaçada e o amante fugitivo. A amiga era (penso), na verdade, apaixonada pela moça, e parece que foi por isso mesmo que a moça afastou-se dela. Essa amiga, com ódio da rejeição, arma o esquema dos telefonemas, exatamente para conseguir uma reaproximação. A moça, ainda que não goste tanto de mulheres sexualmente, estava envolvida pela relação, que incluía um elemento de proteção. Quando ela se viu em perigo, logo esqueceu o rompimento e ligou para a sua amiga. Quando o desejo dessa amiga de rever a moça é satisfeito, e ela consegue consolar a moça, cuidar dela, e voltar a entrar em sua casa, ela confessa em carta a armação dos telefonemas. Mas tarde demais, pois o amante fugitivo aparece para acertar contas...

O amor como relação de poder, o amor como possessivo e macabro. Nesse conto, a moça é a parte frágil e dependente de um relacionamento doentio com a sua amiga. Ela nega para si, mas depende da outra, que se aproveita disso para satisfazer sua paixão. O amante fugitivo da prisão, e concorrente, odeia essa amiga por causa disso. A amiga da moça, que havia prometido jamais chegar perto dela de novo, não aceita ser rejeitada, e busca impor a sua vontade com uma armação. Lesbo-exploitation?

Pensei no quanto a primeira história me lembrou o Mojica Marins, especialmente no meu filme favorito, O Despertar da Besta. Ali o terror aparece na forma de coisas do contemporâneo, relidas numa narrativa fantástica: o LSD, as perversões sexuais, o desvio social, que nos anos 1960 estavam na ordem do dia dos debates públicos. Numa jogada ótima de meta-linguagem, por exemplo, Mojica filma um programa de televisão do qual fez parte, que o apontava (entre outras coisas) como parte dessa degeneração que tomava conta da cultura. No experimento concebido como argumento do filme, alguns estudiosos levam diversas pessoas das mais variadas origens sociais para experimentar sensasões da cidade. Mojica usa esse artifício para falar da São Paulo do seu tempo: drogas, contra-cultura (na forma de uma peça de Zé Celso), sexualidade e ele próprio, na forma do Zé do Caixão.

Ou seja, o terror, pelo menos em alguns filmes dos anos 1960, não seria mais interessante por tratar de questões como essas de "desvio social", como drogas, homo e bissexualidade, dissolução dos valores familiares tradicionais? Não seria uma forma narrativa de lidar com dilemas psico-sociais, com expressões do desvio e de zonas escuras, proibidas, que ainda assim vinham à tona? Não teriam nascido assim tantos dos nossos estereótipos a respeito do que configura uma boa história de terror? E por não pensarmos o que causa terror nos tempos atuais, por isso mesmo não conseguimos desenvolver nossos próprios gêneros de terror, que não sejam novas digestões de histórias antigas? Allan Poe, por exemplo, falava do seu tempo quando escrevia sobre hipnose, eletricidade e descobertas científicas, como parte do seu arsenal literário.

O segundo conto trata de uma espécie de vampiro, que nessa história são cadáveres que, após a morte, vêm beber o sangue daquele que mais amou. Amor, sangue, posse, morte, sexo, ambigüidade sexual: nada melhor para se fazer um filme! Achei interessante alguns detalhes: por exemplo, para expressar o poder hipnótico que o vampiro tem sobre sua vítima, Bava não recorre a nenhum efeito especial. Mostra o rosto do vampiro, depois corta para a moça levantando, e andando em direção ao seu destino trágico. A falta de explicação que esclareça o porquê dela fazer isso parece sugerir esse poder sobrenatural. O amor aqui aparece como paixão trágica, e a pulsão destruidora aparece na forma do Wurdalak, ou vampiro, e não na forma psicologizante ou "realista" da primeira história.

Mas o mais atraente, para mim, nesses dois filmes de Bava que vi, é a forma como ele aborda esses relacionamentos, sem perder de vista o que traz o espectador ao filme: o suspense, o terror. Os personagens são ricos, complexos, mas tudo isso aparece sem quase nenhuma explicação. Será que eu é que invento histórias mirabolantes para enredos simplistas? Bom, espero que não, acho que não! Mas ainda que fosse tudo mirabolação minha, talvez seja por isso mesmo que eu goste desses filmes: me instigam a pensar, a mirabolar histórias, coisa que eu adoro fazer e nem sempre tenho a oportunidade. Como que para preencher os vazios entre os fotogramas. De qualquer forma, fica confirmado que Bava é um dos meus favoritos...

Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástico, Marko! Talvez o grande prazer do cinéfilo frente aos filmes low budge seja exatamente isso que vc escreveu, análises profundas sobre argumentos raros, sem embargo da postura crítica que devemos demonstrar em relação a qualquer meio de expressão artística; a obra aberta, no dizer de Humberto Eco, possibilitando várias leituras que se alternam com a contemporaneidade.

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