Especulações livres

2 de abr. de 2006

Subversões: Spike Lee e Andy Warhol



Tive o imenso prazer de assistir a dois filmes supreendentes nos últimos dias: Trash, de Paul Morrisey (produzido por Andy Warhol, 1970) e Inside Man, de Spike Lee (2006). Não ando com tempo para grandes elocubrações, mas os filmes são inspiradores demais para ficarem de fora deste blog.

O filme de Spike Lee é daqueles que eu gostaria que durassem quatro, cinco horas. Simplesmente um prazer ficar assistindo à história e à forma como tudo se desenrola. Jodie Foster faz um papel pequeno no filme, mas demonstra ser daquelas figuras que brilham por si só, de maneira inexplicável. Pode ser uma análise de fã, mas fico embasbacado com o poder da atriz. A personagem por ela vivida, extremamente interessante, também ajuda. Na pele de uma "faz-tudo" de luxo, ela é paga para resolver problemas, não importa quais. Mas o mais interessante do filme não é ela, e sim a forma com Spike Lee consegue, além de contar uma história mirabolante sobre o assalto que foi sem nunca ter sido, continuar sendo o velho Spike e fazer comentários ácidos o tempo todo sobre a política racial dos Estados Unidos. Em várias cenas a coisa é explícita: ele critica a cultura "gangsta" como corrupção da juventude negra, mostrando um videogame no qual o objetivo é vender crack, assassinar rivais e assaltar. A cena fala por si, e o uso da criança negra é simbólico e poderoso. Uma outra cena que me fez gargalhar sozinho no cinema foi a de Denzel Washington, com um anel de diamantes no dedo médio, mandando o "poder branco", racista e hipócrita, literalmente se fuder; não apenas no filme, mas no mundo inteiro, na indústria cinematográfica, na política. Quase como se Spike Lee estivesse ali encarnado em Denzel, dando um foda-se para o poder do dinheiro sujo e o racismo. Em várias outras cenas, a política de Spike Lee é mais sutil. O cuidado que ele tem em enquadrar atores negros, por exemplo. Ou a forma como os personagens negros aparecem e são construídos. Não via um filme de Spike Lee desde o ultra-politizado Bamboozled (2000), e fiquei impressionado com a continuidade da força de Spike como cineasta militante. Por vezes há uma certa petulância adolescente na forma como o diretor trata dessa questão (especialmente nas cenas finais do filme), mas dado o contexto racista no mundo ocidental, é maravilhoso ver alguém dizendo coisas que vão além do óbvio.

Muito além de qualquer óbvio está Trash (1970), dirigido por Paul Morrisey e produzido por Andy Warhol.

Tive a chance de assistir a este filme há muito tempo atrás, quando tinha uns 15 anos. Vendo o filme hoje, 15 anos depois, fico surpreso com a quantidade de perversões e subversões que o filme consegue apresentar. Ainda hoje fiquei chocado com algumas cenas de uso de drogas e "corrupção de valores", especialmente ligados ao sexo.
Na foto ao lado vemos Holly, travesti/drag queen que rouba a cena do filme sempre que aparece, especialmente ao lado de Joe Dalessandro, estrela de vários filmes de Andy Warhol. O filme acontece por meio de situações, que aparentemente são criadas a partir de improvisos dos atores. Na maioria delas, Joe Dalessandro está injetando (aparentemente de verdade) heroína. Holly, que no filme é como a amante de Joe, reclama que as drogas o tornaram impotente. Enquanto isso, seduz um garoto menor de idade a tomar heroína. No seu torpor, ela "se aproveita" do garoto. Numa outra cena hilária, desconcertante e complexa, Joe tenta roubar uma casa e é supreendido pela dona, uma figura absurda que aparentemente casou-se com um homem rico pelo dinheiro e é tão ou mais desequilibrada que o casal Joe e Holly. Assim que percebe a beleza física do rapaz, propõe que este a estupre no sofá. Quando seu marido chega e supreende os dois, ela apresenta Joe ao marido como amigo de infância, e lhe dá um banho. No banheiro, propõe que Joe transe com seu marido, ou com o casal, a que Joe responde quase monossilábico de forma negativa. Parece que o rapaz só se interessa mesmo pela heroína. No decorrer da cena, o marido dá a Joe uma seringa e este injeta a droga, sob os olhares histéricos da esposa e seu marido. Enquanto Joe se droga, eles começam a discutir, tornando a situação altamente tensa. Por fim, o marido expulsa um Joe altamente drogado de casa, por medo de que morresse de overdose.
A explicação literal de cada cena não traduz nem de perto o poder do filme. Mais do que uma coleção de situações absurdas, o filme é quase que uma investigação a respeito das razões do ser humano. Vemos críticas ao modo de vida da época, que glamourizava essa subversão como "alternativa", num debate altamente sofisticado a respeito de como uma aparente subversão de valores está, na verdade, muitas vezes presa à repetição das mesmas estruturas. A cena na qual Holly, encenando uma gravidez, conversa com o assistente social para receber ajuda do governo, é extremamente marcante. O assistente, com um broche hippie, se deslumbra com a forma de vida do casal, e sugere que Holly lhe dê seus sapatos em troca de uma recomendação favorável à ajuda mensal. Poderíamos pensar nas motivações de cada lado, na forma como a interação ocorre, no contexto explorado pela cena, nas relações de poder ali encenadas.
PS1: Não posso esquecer de mencionar Mojica Marins, que em seu filme Rituais Sádicos (a. k. a Despertar da Besta, 1970) faz comentários bastante parecidos a respeito das drogas e das revoluções nos costumes na cidade de São Paulo. Mal interpretado como cinema "B" ou "trash", Mojica participa desse debate, ainda que seja improvável que tenha tido contato com Warhol ou com as vanguardas de Nova York. O fato de que achemos um filme como Trash "cult" e um filme como Despertar da Besta "trash" é sintoma da ignorância da nossa inteligência brasileira, marcada por valores coloniais e subservientes. Consumimos a subversão alheia enquanto destruímos a nossa própria. Artistas como Mojica, que conseguiram vivenciar sua arte, produzí-la e dizer algo ao mundo, contra todas as adversidades, mereceriam um tratamento mais digno, ainda que somente nas páginas de críticos e intelectuais.
PS: Subversão é uma palavra ambígua, que encerra uma gama enorme de potenciais significados. Há uma certa banalização da subversão atualmente, talvez invenção dos anos 1960 (comentada pelo filme de Trash), e que deslumbra todo tipo de pessoa que se pensa crítico da sociedade. Não há hoje em dia alternativa aparente a isso: compramos a subversão em shoppings, depois a trocamos pela nova moda da temporada; somos quase que uma geração à deriva, sem ideais nem certezas. Isso pode ser bom, pois não seguimos fórmulas aparentemente fáceis. Mas isso nos tira também a leveza de buscar modos de vida e objetivos próprios, alternativos e que proponham valores que façam sentido para nós. A construção e a vivência de valores novos é algo importante, mas algo mal resolvido na minha cabeça. Oscilo entre um neo-conservadorismo e uma nostalgia hippie desde que me decidi pelas ciências sociais. Ou seja, continuo altamente mal-resolvido! E continuo a busca, pois é ela que interessa.

8 comentários:

Ale Lima disse...

Muiot bacana a sua explanação sobre o filme de Spike Lee, pois como disse um amigo eu não aguento mais o povo falando dele e eu ainda não fui assisti-lo. E faz tempo que não fazem um filme policial tão bom.Bom foi ler a crítica antes do filme para comentar as cenas citadas depois. Quanto a Trash , assisti a um pedacinho há anos, preciso revê-lo mas em se tratando de subversão, o problema é que realmente ela está banalisada na sociedade que até deixa de ser surpreendente no cinema...Bjs

Anônimo disse...

Não vi ambos os filmes, mas adorei os comentários. Atualmente estou com pouco tempo pra ler todos os blogues que costumo visitar. Abçs.

Anônimo disse...

Eu quero ver esses filmes os seu comentários são ótimos.

Anônimo disse...

comentário superficial, fútil e bem bicha: o que é Joe Dalessandro, hein?
e, aliás, o que é Jodie Foster?
e nem to falando de beleza, mas da porção misteriosa que os dois têm no rosto, na atitude...
bjs tommie

Marko disse...

Tommie, eu achava o Dalessandro mais na primeira vez que vi o filme. Dessa vez notei que ele deve ter tipo 1m50! Mas o "quê" de carisma e mistério é fortíssimo nos dois com certeza...

Anônimo disse...

Aham... agora entendi seu nick!! Fantásticos os comentários!!! Com relação a Plano Perfeito, concordo. Com relação a Trash, que eu não vi: fiquei com vontade de ver. E olha que parece bem hardcore...

Daiverson Machado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daiverson Machado disse...

Oi Marko, acabei de assistir "Trash" e fui no google em busca de alguns comentários pertinentes a respeito desse filme na grande rede, e ai encontro logo no seu blog, coincidência. Gostei demais do filme, situações absurdas e impressionantes, algumas super engraçadas, uma espontaneidade, que na minha modesta opinião, é o melhor do filme.
Sou grande fã dos filmes independentes americanos da década de 60 e 70, de Jack Smith a John Waters. São produções feitas no calor das idéias, fora dos padrões, experimentando e elevando ao máximo o melhor da arte cinematográfica, completamente independente e livre. Filmes onde as reflexões surgem naturalmente, sem nenhum manifesto teórico e toda aquela sizudes de outros movimentos, que rendem filmes com grande vitalidade de idéias, assim como no cinema marginal brasileiro.
Neste filme, as interpretações são todas improvisadas e os atores interpretam praticamente a si próprios, acho isso bom demais, pois cada cena nos transmite grande veracidade. Com personagens que buscam tudo no lixo, esse filme mostra que é possível fazer bons filmes fora dos grandes esquemas.
É uma pena que nós brasileiros vivemos sob o julgo da colonização cultural, o cinema do mestre Mojica ainda é tido como primitivo, trash (lixo), algo inferior. O próprio só foi redescoberto e renasceu das profundezas da lata de lixo do esquecimento, depois de virar Cofin Joe lá fora. Já vi muitos críticos que torcem o nariz pros seus filmes, e os encaram com tom sarcástico, enquanto acham os filmes gringos feitos nos mesmo moldes, “belos exercícios de experimentação”, “cult”. Ninguém merece!

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