Especulações livres

16 de nov. de 2005

Manderlay


Atenção! Se você ainda não viu o filme, não leia o post! Pode estragar a sua experiência pessoal com o filme. Acabei de chegar em casa e escrevo agora, pois minhas curtas férias chegam ao fim e eu provavelmente terei pouco tempo para escrever depois. Além disso, queria ter um post com as impressões do momento mesmo, como é tradição desse blog. Várias coisas me passaram pela cabeça ao ver o filme: que fórmula chata essa que o diretor encontrou, será que teria a mesma força numa segunda vez? Será que o público vai "ter saco" para as elocubrações intelectuais do Von Trier novamente? Não que eu seja contra elocubrações, pelo contrário, mas pensei que pudesse haver um certo esgotamento, pela força que teve o primeiro filme. Passado o impacto de uma certa novidade formal de Dogville, qual seria o valor dessa trilogia sobre uma América abstrata e conceitual? Conceitual é uma palavra que diz muito sobre o filme, e é uma das razões que me fez gostar bastante desse, tanto quando o Dogville, ainda que esse filme seja um tanto irritante. Parece que o diretor quis ser mais direto desta vez, colocando até o mapa dos EUA logo no início, falando em datas (1933), tornando cada vez mais concreto esse país abstrato que era o do primeiro filme. Ou seja: em Manderlay, parece que Von Trier aparece mais, dá uma opinião mais contundente, diz com mais clareza a que veio com o seu discurso, torna-se menos metafórico, apesar de ainda bastante abstrato. Engraçado como as faces dos atores remetem a essa abstração: grandes estrelas do cinema norte-americano (a indústria de Hollywood, com toda a carga simbólica, sociológica e conceitual que esse termo carrega) atuando num filme abstrato, tornam os seus personagens como que evocações desse EUA concreto. Os atores encarnam bem mais que um personagem, eu quero dizer: quando vemos Bacall e Glover, por exemplo, vemos personagens que são maiores do que os atores, vemos pedaços dessa indústria sendo remixados pelo diretor, talvez seja isso o que eu esteja tentando dizer. E essa remixagem transforma o filme num produto ainda mais interessante do que somente as teses teóricas do diretor. Essa tese, dessa vez, remete a uma circularidade curiosa: o filme começa com um açoitamento, que não acontece por intervenção de Grace; e termina com Grace açoitando violentamente e passionalmente o mesmo escravo, após ela ter tentado tirar os negros de Manderlay da escravidão. Descobrimos que as leis racistas e escravocratas foram fruto de um acordo entre Senhores e Escravos, de forma a proteger a todos das mudanças impostas pela abolição, que traria certamente perigos inusitados para todos, alteraria hierarquias, mataria uns até. Não sei direito avaliar o que penso da tese do filme como um todo, pois mal digeri o que vi. Mas achei interessante esse filme passar num país semi-escravocrata como o Brasil, onde o acordo de cavalheiros mencionado acima funciona de forma exemplar, legitimado por todo tipo de discurso de boa convivência racial. Mas fiquei me questionando sobre a sociologia da coisa toda: um diretor sueco, protegido pelo aparato cultural de seu país, criticando o "império", produzindo discursos que poderíamos chamar de "contra-hegemônicos"...? Minhas experiências com europeus me deixam, de uma forma bem pessoal, ressabiado com um certo maniqueísmo, que constrói uma guerra cultural entre europeus civilizados e americanos violentos. Afinal, esses americanos, são todos regidos pela lei dos gângsteres, representados nesse filme pelos clichês que a própria indústria de cinema americana construiu ao longo dos anos, são violentos e pouco afeitos à cultura e à civilização... Sei não. No entanto, o filme é um poderoso discurso a respeito das políticas raciais advindas do escravismo, que são excelentes para pensar todo o continente, especialmente o Brasil. Uma pena que esse discurso mal chega aqui, e pouco conhecemos das lutas dos negros norte-americanos, ou mesmo das lutas dos negros brasileiros. Bom, nada mais chique do que ir ver um filme anti-racista e anti-americano sueco num cinema repleto de pessoas sócio-culturalmente seletas em São Paulo...

6 comentários:

Rodrigo disse...
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Rodrigo disse...

Desconfio que senti uma ironia nessa última frase... Enfim, não vi, mas li o texto. Infelizmente, não tenho a menor idéia de quando ele chegará nessas bandas de cá.

Anônimo disse...

Maravilhosa a sua análise!! Vi MANDERLAY recentemente, e para mim não teve o mesmo impacto que o anterior, digo no sentido estético, pra falar a verdade essa fórmula 'bretchiana' adotada pelo Von Trier já começa a cansar, ainda bem que termina no próximo filme (ele não vai ser louco de continuar com isso após o fim da trilogia). No entanto, ele foi astuto ao abordar um assunto que é uma eterna ferida aberta na história daquele país, embora em alguns momentos senti uma certa manipulação na abordagem do assunto, e o final também não me agradou tanto assim.... bem, gostaria de analisá-lo com mais calma, mas sua resenha já ganhou o páreo. Abraço!

Ale Lima disse...

Vou pular esse post , pois não vi ao filme ainda, mas prometo que volto !

Anônimo disse...

Oi MARKO belo Post. O segundo filme de uma trilogia sempre é um risco mas gostei muito de Manderlay e estou ansioso para ver a parte final, o problema que ela só chega em 2007...

Anônimo disse...

Tá sumido, meu chapa. Dê sinal de vida. Abraços

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